Opinião

Argumento ecológico para quem?

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 06/07/2019 04:20
O governador do Distrito Federal declarou no dia 12 de janeiro que o projeto ;Orla Livre; seria revertido. A proposta foi objeto de um concurso público de arquitetura e urbanismo com o objetivo de desocupar as margens do lago e torná-las públicas, como Lúcio Costa, autor do projeto vencedor do concurso para a nova capital, especificou.

O argumento contra a desocupação é que o público vai trazer lixo e insegurança às margens do lago. Os potenciais de um lago integrado à cidade foram muitas vezes levantados: local de lazer, de eventos culturais e esportivos e, sobretudo, uma Área de Preservação Permanente (APP) de acesso livre, onde todos possam ir e vir. Por fim, a ideia é que a população que desfruta a orla do lago nos fins de semana cuidaria e respeitaria o lugar de lazer.

Será que um gramado asséptico é proteção ambiental? Segundo o paisagista francês Gilles Clément, o gramado não é o mais indicado para favorecer a diversidade da fauna e da flora. Além do mais, a quantia de água desperdiçada para regar é absurda e muitas pessoas usam fertilizantes químicos que diretamente vão escoar no lago. Onde está o argumento ecológico?

O que se esconde atrás do pobre argumento ecológico apresentado pelo governador é a pressão que a minoria privilegiada que invadiu as margens do lago exerce sobre o governo. Minoria que teme pela invasão do sujeito estrangeiro e pobre nesse espaço que ela monopoliza e que, muitas vezes, usufrui pouco, pois é comum ver mansões enormes com enormes quintais à beira do lago, ocupadas apenas pelos jardineiros que os cuidam e pelos pits bulls que os vigiam.

Do outro lado da cidade, no bairro Santa Luzia, da Estrutural, também existe uma ameaça de remoção: são centenas de famílias que vivem na faixa de 300 metros de proteção ambiental ao redor da Floresta Nacional. Enquanto no Lago Sul os invasores perderiam o seu deck e a garagem para a lancha, em Santa Luzia os invasores perderão suas casas e as demais poucas coisas que têm!

Ibaneis começou sua gestão falando de tolerância zero com relação às ocupações. Como já foi experimentado em Nova York em 1994 pelo prefeito Rudolph Giuliani, essa lógica de ;eles contra nós; só traz mais tensão entre as classes, entre as forças do poder e as vítimas. No caso da declaração do governador do Distrito Federal, a tolerância zero é para quem?

Ibaneis não pensou em aplicar a tolerância zero no Lago Sul quando falou em reverter o projeto ;Orla Livre;. Não, a tolerância zero de Ibaneis significa, apenas, mandar máquinas para derrubar as casas dos pobres do bairro Santa Luzia, sem mais nem menos. No caso das invasões do Lago Sul, o governo faz o que tem que ser feito: promove um concurso nacional de projeto de arquitetura e urbanismo e debates entre as partes a favor e contra o projeto. Psicólogos e política para os ricos e polícia e tratores para os pobres.

Existe um problema de discriminação muito descarado. Isso não é novo, claro. Por que as pessoas foram construir a sua casa na beira do Parque Nacional? Talvez porque os poucos programas de habitações destinados às pessoas de baixa renda não atendem aos critérios mínimos de direitos fundamentais inscritos na Declaração dos Direitos Humanos e na Constituição brasileira: ;Art. 6; São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.;

O governo tem um papel fundamental nessa situação desesperada dos mais pobres: a quantia e a qualidade (com todos os atributos do artigo 6;) de casas populares estão muito aquém do desejado. No depoimento de Rosângela, moradora do bairro Santa Luzia, podemos ver sua frustração e resignação:

;Meu marido tem um cadastro na Codhab há 20 anos... Até agora a gente não conseguiu. Dizem que já me chamaram três vezes e eu recusei. Mas eu não recusei, porque eu não obtive nenhum chamado, nem por via telefônica, nem por e-mail, nem por carta, por nada. [...] Mas eu jamais ia recusar sendo que eu não tenho onde morar. Moro num lugar que o esgoto é a céu aberto, não tenho água, não tenho luz, como é que eu vou recusar uma estrutura boa pra eu morar com a minha família?; (31/3/2019)

O Estado não age nem providencia soluções adequadas. Quando ele manda desocupar uma área, só tira as pessoas de lá, desestabiliza e fragiliza as famílias que têm que recomeçar tudo em um outro lugar.

Voltando ao tema, o argumento ecológico não pode se sobrepor à vida das pessoas quando se trata de necessidades básicas, cuja falta pode mesmo colocar em risco a sobrevivência. Se o Estado se responsabilizar, cumprindo o papel claramente formulado no artigo 6; da Constituição e nos tratados internacionais dos quais é signatário, determinados setores da população não teriam mais que ocupar áreas de relevância ecológica.

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