Opinião

História apagada

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 15/07/2019 04:23


Há um mês, estudantes da Escola de Artes e Arquitetura da Universidade Católica de Goiás (UCG) apresentaram o projeto de um memorial, encomendado pela Associação de Moradores do Setor Aeroporto, em Goiânia, com o intuito de erguer o prédio na área do Lote 30 da antiga Rua 26-A, onde ficava o ferro-velho em que Wagner Pereira, então com 19 anos, e Roberto Alves, 22, abriram a cápsula com 19 gramas de césio, em 1987. No entanto, a ideia não tem prazo nem dinheiro para sair do papel e da maquete. Tampouco é a primeira vez que se fala em um prédio para contar a história da tragédia.

Conforme mostrou o Correio em reportagens publicadas há uma semana, autoridades goianas têm feito de tudo para que o maior acidente radioativo do mundo fora de uma usina nuclear caia no esquecimento, enquanto o número de vítimas e o descaso com elas só aumenta. Diversas formas de silenciamento para suprimir a memória dos goianienses sobre o acidente são apontadas em um estudo da Universidade Federal de Goiás (UFG). A pesquisadora Célia Helena Vasconcelos concluiu que os fatos históricos vêm sendo gradativamente retirados da narrativa goianiense. Ela cita alterações em nomes de ruas, como a Rua 26-A, que hoje se chama Rua D. Francisca de Costa Cunha Dom Tita.

;Renomearam a Rua 57, a Rua 26-A. Para encontrá-las, hoje em dia, é preciso ter alguém que conheça a história. E a cartada final foi renomear a SuLeide, tirando o nome de Leide das Neves da superintendência. Ela é um símbolo, um ícone, um signo, o nome de uma criança que morreu no acidente. Silenciar o órgão é silenciar as vítimas, os radioacidentados;, denunciou a pesquisadora ao Correio.

Passados quase 32 anos, não há sequer consenso sobre o número de vítimas do césio 137. Oficialmente, quatro pessoas morreram por exposição excessiva à radiação, mas a quantidade de pessoas contaminadas ainda provoca discussão. O governo federal reconhece 120. O governo de Goiás fala em um número quase 10 vezes maior: 1.032. Entidades que representam as vítimas dizem ser 1,4 mil, sendo que houve 66 mortes. Em termos de contaminação, o desastre de Goiânia perde apenas para o da Usina Nuclear de Chernobil, na antiga União Soviética, em 26 abril de 1986.

Assim como em Chernobil, trabalhadores goianos foram expostos à radiação sem a proteção adequada. Muitos sequer sabiam o que manuseavam no processo de descontaminação das áreas por onde a cápsula passou.

A história do césio 137 não é bonita, é dolorida. Mas ela faz parte da história de Goiânia, de Goiás e do Brasil. Não podem, simplesmente, apagá-la ou mudá-la. Preservar histórias como essa por meio de um museu, por exemplo, serve, por exemplo, para prevenir outras tragédias.

Afinal, ainda hoje descartam aparelhos daquele tipo sem vigilância ou fiscalização, como aconteceu em 22 de janeiro, quando a Vigilância Sanitária recolheu uma cápsula de raio x em um ferro-velho de Arapiraca (AL). Por sorte, ela estava intacta.

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