postado em 26/07/2019 04:06
Com o aumento da complexidade do mundo, do volume de seus problemas e de soluções cada vez mais automatizadas, a exigência por atuações profissionais mais criativas e abrangentes e, ao mesmo tempo, mais acolhedoras e humanas é um imperativo para todos nós, inclusive para os agentes do Sistema de Justiça. Isso se faz ainda mais verdade, especialmente, em casos que envolvam crianças durante a primeira infância, um período considerado pelas descobertas mais atuais da neurociência como um dos mais importantes no desenvolvimento do ser humano.Por estarem em uma fase peculiar de produção neuronal e plasticidade cerebral maiores do que em qualquer outro momento da vida, as crianças até seis anos de idade são mais vulneráveis aos estímulos positivos e negativos do meio ambiente e do cuidado recebido, inclusive no âmbito de um processo judicial e do encaminhamento dos conflitos que as envolvem dentro do Sistema de Justiça e suas instituições.
Juízes, promotores, defensores públicos, advogados, psicólogos, assistentes sociais, cartorários e todos aqueles que trabalham de alguma forma em casos judiciais são desafiados cotidianamente por graves e delicadas situações que impactam diretamente crianças: disputas agressivas de guarda ou pensão; denúncias de abuso ou negligência e toda forma de violência no ambiente familiar ou em espaços comunitários de convivência; processos de suspensão ou destituição do poder familiar, que incluem socioacolhimento, família acolhedora ou adoção; decretação de prisão provisória de gestantes, mães e pais encarregados do cuidado; solicitações de vagas em creche, tratamentos ou leitos em hospitais e de benefícios sociais; ações coletivas para proteção contra problemas, como a poluição do ar, água, solo, alimentos e tantos outros que afetam diariamente a vida das crianças e suas famílias.
O funcionamento tradicional do Sistema de Justiça nesses casos ; por uma lógica adversarial e um processo decisório guiado exclusivamente pelas páginas frias dos autos ; parece ser insuficiente e, muitas vezes, a causa de outras violações institucionais. Assim, a devida resolução ou o encaminhamento desses processos exige outra forma de pensar e agir; exige um Sistema de Justiça verdadeiramente acessível, mais sensível e amigável a todas as crianças e suas famílias.
Acessível, para que permita que as vozes e denúncias apresentadas pelas crianças e seus cuidadores sejam ouvidas, evitando tragédias como a do menino Bernardo e possibilitando resoluções estruturais para demandas coletivas. Sensível, para que, no processo de escuta e encaminhamento dos conflitos, haja um cuidado reforçado e um acolhimento humano diverso para com a condição de vulnerabilidade da criança e seus familiares, primando pela preservação dos laços socioafetivos, quando possível e recomendado. Amigável, para que o processo adversarial seja superado pela adoção de métodos eficientes de resolução de conflitos, como conciliação, mediação ou o encaminhamento efetivo para intervenções não jurídicas, como escola de pais, atendimento psicológico, médico ou assistencial.
Para tanto, o Sistema de Justiça precisa se reinventar. Tanto na formação de seus profissionais ; os quais não são apresentados às leis e práticas do sistema de garantia dos direitos da criança e do adolescente ; como na gestão judicial de todo orçamento, estrutura e equipe das varas, promotorias e defensorias, muitas das quais não são especializadas e não dispõem de equipes técnicas qualificadas para o desenvolvimento dos essenciais pareceres psicossociais ou não desenvolvem encontros periódicos para revisão conjunta dos casos e suas estratégias de intervenção.
Para fomentar tais transformações, o Conselho Nacional de Justiça está liderando um esforço inédito em nosso país: o Pacto Nacional pela Primeira Infância. Com o objetivo de articular ações do Sistema de Justiça, órgãos públicos do Poder Executivo, academia e entidades do terceiro setor, diversas estratégias estão em desenvolvimento com vistas à defesa e à promoção dos direitos da criança, como a elaboração de uma pesquisa nacional sobre a realidade do Sistema de Justiça para as crianças, de um curso de formação e de eventos nas cinco regiões do país para milhares de profissionais atuantes na área e a reflexão sobre possíveis alterações de normas e práticas que regulam o processo judicial.
Precisamos de uma nova Justiça, que reconheça que crianças não são miniadultos e necessitam de um atendimento especial por estarem em uma fase peculiar de desenvolvimento progressivo de suas capacidades e de entendimento do mundo a sua volta. Cuidar das crianças nos espaços judiciais, além de cumprir a ordem constitucional do artigo 227 de dar prioridade absoluta a elas, seus direitos e melhor interesse, é garantir que o sentimento de justiça seja apreendido desde o começo da vida.