Opinião

Balançar o trem para continuar andando

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 26/07/2019 04:06


Nas últimas duas semanas, as redes sociais e a mídia em geral se ocuparam com o debate sobre a posição de parlamentares que contrariaram a decisão de seus respectivos partidos na votação do projeto de reforma da Previdência na Câmara de Deputados. Ora, esse tipo de situação aconteceu diversas vezes, em anos anteriores, com a maioria dos partidos, inclusive os envolvidos na votação em questão. Então, por que tamanha repercussão?

A grande diferença é que o foco das críticas recaiu sobre parlamentares cujas campanhas e posteriores mandatos estão fortemente apoiados na ideia de renovação da política. São lideranças oriundas de movimentos cívicos como RenovaBR, Acredito, Livres, Agora, RAPS surgidos na esteira da gravíssima crise de representação, revelada a partir das manifestações de junho de 2013. Guardadas as diferenças entre si, esses movimentos têm em comum o apoio efetivo na seleção e preparação de novas lideranças para exercerem seus mandatos, tendo por base uma visão que priorizasse a elaboração de propostas e projetos inovadores, com capacidade de contribuir para a identificação de soluções para os problemas que afligem a maioria da sociedade brasileira.

Como em nosso país, lamentavelmente, a legislação eleitoral ainda não permite o lançamento de candidaturas avulsas ou independentes, algumas legendas abriram espaço para que essas lideranças pudessem disputar o pleito de 2018. Foi uma atitude generosa e inteligente, uma vez que podiam apresentar esses nomes como um exemplo de oxigenação em suas práticas partidárias. Por outro lado, concordaram que seria respeitada a independência na futura atuação parlamentar. Durante a campanha eleitoral, tudo parecia caminhar normalmente e o sopro de renovação era exaltado pelos dirigentes partidários. Porém, assim que algumas dessas lideranças começaram a se destacar no cenário político nacional, com um discurso e uma prática verdadeiramente renovadores, o jogo começou a mudar.

No auge da discussão pública, vimos surgir com força o seguinte argumento: se querem ser fiéis aos movimentos cívicos que integram devem criar seus próprios partidos políticos. Em outras palavras, para ficarem nos partidos pelos quais se elegeram precisam se submeter às respectivas direções partidárias. O incrível é que utilizaram essa linha de argumentação tanto dirigentes partidários que estão na estrada há algum tempo, como Carlos Lupi, Ciro Gomes e Carlos Siqueira, quanto o principal dirigente de um partido criado na esteira da renovação política, caso de João Amoedo. Na verdade, ao analisar as razões dessa atitude comum entre políticos com histórias tão diferentes entre si, é necessário trazer à tona uma discussão relevante para o futuro da democracia representativa em nosso país, e que pode ser sintetizada na seguinte pergunta: o modelo de partido político existente desde o século 20 ainda é a melhor forma de organizar os grupos de interesse na sociedade?

Numa sociedade conectada de forma instantânea e com o acesso ao conhecimento cada vez mais amplamente disseminado, é uma afronta assistirmos à proliferação de estruturas partidárias verticalizadas e centralizadas, com pouquíssima ou nenhuma valorização da democracia interna, submetidas, em muitos casos, a interesses e caprichos de seus dirigentes, muitos dos quais ocupando esses cargos há décadas. E é preciso reconhecer que tais problemas não se restringem aos partidos mais antigos, tendo contaminado alguns dos mais recentemente criados. Isso sem contar os casos divulgados pela mídia daqueles partidos cuja existência está associada unicamente à possibilidade de receber e administrar os recursos dos fundos partidário e eleitoral.

Há entre nós intelectuais respeitáveis e políticos de reputação ilibada que advogam a necessidade de manutenção desse modelo, apostando em uma renovação das práticas internas e de suas lideranças. Claro que é possível melhorar, mas parece-me inevitável colocarmos nossas cabeças para refletir sobre qual seria a melhor maneira de garantirmos a preservação da democracia representativa.

Há uma história que me contaram sobre uma viagem de trem por um deserto. Tudo ia bem até que surgiu um problema e a viagem foi interrompida. A tripulação constatou que o problema era insolúvel e comunicou ao comandante. Perguntado como deveriam proceder, receberam uma resposta surpreendente: ;desçam com alguns homens e balancem o trem para parecer que está andando;. Será que continuaremos a balançar esse trem chamado partido político?


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