Opinião

Brasil e Argentina

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 20/08/2019 04:05


Era uma noite comum em Buenos Aires em 1978 quando, depois de trabalhar em reportagem sobre a disputa entre Brasil e Argentina, fui tomar umas taças de vinho com colegas jornalistas argentinos. Após vários goles, no ápice da discussão política apaixonada, um deles, correspondente na província de Corrientes, fronteira com Foz do Iguaçu, disse de maneira surpreendente e ousada:
; O que precisamos fazer é jogar uma bomba atômica no Brasil.

Era minoria absoluta na mesa. Mas tinha que responder. Pensei um pouco e mandei:

; Só se for de táxi, porque vocês não têm avião para fazer isto. E se preparem para o contra-ataque feito por nordestinos armados com peixeiras.

A turma trabalhou rápido para acalmar a mesa, a conversa variou para outros assuntos e terminamos a noite cantando tangos. A cena resume o confronto entre Brasil e Argentina por causa da construção da hidrelétrica de Itaipu. O acordo assinado entre Brasil e Paraguai em 1973 incomodava muito o governo militar da Argentina. Os generais portenhos chamavam o projeto brasileiro-paraguaio de bomba hídrica. Eles afirmavam que, se as comportas da hidrelétrica fossem abertas, Buenos Aires poderia ficar debaixo da água originária do Lago de Itaipu.

A disputa política pela hegemonia no Cone Sul opunha o regime militar de lá com o daqui. Os militares argentinos foram mais radicais. A ditadura argentina matou entre quinze e trinta mil pessoas, sequestrou centenas de crianças, torturou milhares, jogou gente viva de aviões e helicópteros no Rio da Prata e, para culminar o show de loucuras, fez a guerra contra a Inglaterra para tomar as ilhas Malvinas (Falklands). O general Galtieri perdeu a guerra e o poder. E o país caminhou para a redemocratização.

Naquele período, além da discussão sobre Itaipu, na qual os argentinos se envolveram, os militares de Buenos Aires avançaram bastante na pesquisa para dominar o ciclo nuclear. Eles chegaram perto de produzir uma chamada bomba atômica a partir do método conhecido como água pesada. A resposta brasileira foi imediata. O presidente Geisel assinou contrato de transferência de energia nuclear para fins pacíficos com uma empresa da então Alemanha Ocidental. Mas os militares brasileiros desenvolveram um projeto secreto dividido pelas três Forças Armadas. Cada uma delas seguiu caminho tecnológico diferente.

O da Aeronáutica não funcionou. Dele restou apenas um buraco profundo na base aérea de Cachimbo, no Pará, destinado a detonações subterrâneas. O então presidente Collor mandou fechar o equipamento. O do Exército, desenvolvido nas instalações na restinga de Marambaia, no Rio de Janeiro, também não evoluiu muito. O projeto que deu certo foi o da Marinha, baseado em ultracentrifugação. O projeto original era dominar totalmente o ciclo nuclear com objetivo de ter a capacidade de produzir a bomba. Hoje os técnicos utilizam seus conhecimentos para construir o gerador que vai equipar o submarino nuclear brasileiro que está sendo montado em Itaguaí (RJ).

José Sarney e Raul Alfonsín, civis, decidiram acabar com os projetos nucleares dos militares. E os dois lados desistiram de construir a bomba. Mas a melhor resposta ao ambiente de hostilidade entre os dois países foi a criação do Mercosul, com objetivo de unir as economias de Brasil e Argentina. O Uruguai entrou no acordo por questões geográficas e estratégicas.

Surgiu o novo bloco que possibilitou a Argentina se tornar o terceiro maior parceiro comercial do Brasil, depois de China e Estados Unidos.

Essa história ocorre a propósito das declarações destemperadas do presidente Jair Bolsonaro sobre a possível vitória de Alberto Fernandez e sua vice Cristina Kirchner nas eleições do país vizinho. A Argentina insiste em caminhar no sentido errado da história. Já frequentou a lista das cinco maiores economias do mundo, possui matéria-prima em abundância, produz petróleo, trigo, soja e tem pecuária desenvolvida. A população é educada, mas o populismo fez estragos profundos.

A Argentina é país amigo, sob qualquer governo. Se a oposição vencer as eleições, vai continuar a fazer negócios com os brasileiros e deverá permanecer no Mercosul. A diplomacia brasileira errou ao não se colocar na qualidade de negociador no caso da Venezuela. Perdeu a capacidade de reduzir, através do diálogo, o tenebroso cenário hoje existente em Roraima. É difícil acreditar que a diplomacia brasileira, outrora orgulhosa, hoje humilhada, vá repetir o erro, desta vez, numa escala absurdamente mais explosiva.

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