Opinião

Vida além-muros

» PAULA ANDERSON DE MATOS EUSTÁQUIO Arquiteta e urbanista (UCG/2002), mestranda pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UnB, analista de Gestão e Planejamento Urbano e Regional da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Habitação

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 31/08/2019 04:05
» PAULA ANDERSON DE MATOS EUSTÁQUIO
Arquiteta e urbanista (UCG/2002), mestranda pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UnB, analista de Gestão e Planejamento Urbano e Regional da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Habitação

Meses atrás, em um encontro com três amigas, uma delas, moradora de Águas Claras, foi questionada se gostava de morar naquele bairro. Ela relatou que o que mais a agrada é a autonomia conquistada pelo filho pré-adolescente, entusiasmado por não depender da mãe para realizar suas atividades cotidianas: ;Ele consegue ir à escola, à casa de amigos, jogar basquete na quadra da praça e encontrar amigos na pizzaria da esquina caminhando ou de bicicleta;. Uma delas rapidamente a questionou se era seguro. Ela respondeu enfaticamente: ;Sim, Águas Claras é muito viva e sempre movimentada;.

Ao refletirmos a situação relatada por minha amiga nos deparamos com um paradoxo: como seria possível encontrar vitalidade nas ruas de um bairro em que proliferam condomínios fechados? Os espaços públicos de Águas Claras são predominantemente marcados por uma paisagem inóspita: grandes extensões de muralhas que envolvem prédios residenciais de até quase 40 pavimentos. Muitos deles apresentam três, até quatro andares de garagens emparedadas voltadas para as áreas públicas.

Apesar de ter distâncias passíveis de serem percorridas a pé ou de bicicleta, o ato de caminhar por Águas Claras é desagradável. As calçadas são estreitas, sem arborização e malcuidadas em todo o bairro. Em algumas situações, pode-se observar sua obstrução com o avanço de tapumes de canteiros de obras de empreendimentos, obrigando o pedestre a disputar a rua com os carros.

As edificações do bairro dão as costas ao que é público e coletivo. Ignoram toda a vida social que a cidade oferta, sob o discurso do medo, refletido nos muros cegos que fazem interface com a rua. O regozijo do filho por poder desfrutar da vida urbana das ruas de Águas Claras e a sensação de segurança, relatada pela mãe, ocorrem não pela qualidade dos seus espaços públicos nada convidativos ao uso, mas, sim, pela alta densidade de moradores do bairro que se movimentam nas suas ruas.

Como urbanista, apaixonada por cidades, alegra-me ouvir o relato de uma moradora que valoriza a vida pública urbana. O bairro é palco de recorrentes polêmicas, como a discordância entre moradores e Administração Regional no momento da implementação da pintura de ciclofaixas ao longo das avenidas principais. Atraída pela propaganda de se morar nos condomínios clubes, que oferecem uma vasta gama de atividades no seu interior, com o discurso de que nesse tipo de moradia ela se protegeria da violência urbana das ruas, minha amiga elegeu Águas Claras para viver com a família. Hoje, o que a motiva permanecer no bairro é justamente a animação da vida que acontece lá fora.

A busca pela sociabilidade e liberdade de ir e vir ainda prepondera mesmo em comunidades que escolheram viver enclausuradas. Essa comunidade ávida por exercer seu direito citadino de apropriação dos espaços públicos deveria se envolver mais com as causas urbanas. A participação e contribuição popular nos projetos que favorecem o florescimento da vitalidade é imprescindível para a construção de cidades mais seguras e democráticas. Tenho esperança que consigamos sair desse estado de torpor em que nos encontramos, que possamos reconhecer os efeitos da arquitetura nas nossas cidades e os efeitos das cidades em nossas vidas. Aguardo ansiosa pelo próximo encontro em que possa ouvir o quanto ela e sua família estão engajadas em contribuir para transformar ruas e praças de Águas Claras em espaços mais amistosos e convidativos à circulação de pedestres e ciclistas.




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