Opinião

Artigo: Inversão de valores

"Num país que registra uma morte por homofobia a cada 23 horas, um feminicídio a cada duas horas e o assassinato de um jovem negro a cada 23 minutos, o que incomoda uma autoridade é a simples demonstração de amor"

Adriana Izel
postado em 10/09/2019 09:00
Um simples beijo dentro das páginas da HQ Vingadores: a cruzada das crianças, vendida na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, expôs o constante retrocesso no Brasil. Bastou que uma pessoa postasse uma cena da troca de carinhos entre os personagens homens Hulkling e Wiccano, que faz parte do quadrinho, nas redes sociais, dizendo ser uma ;ofensa;, para que o prefeito do Rio, Marcelo Crivella (PRB), pedisse o recolhimento das edições da obra no evento. Sob a alegação de ;conteúdo sexual para menores;, ele disse que o material deveria ser retirado e só poderia circular embalado em plástico preto com um aviso sobre o teor do conteúdo.

A decisão de Crivella movimentou as redes sociais, e mais do que isso, mostrou dois sérios problemas: a censura, ao mandar retirar os livros dos estandes, e a homofobia, já que a decisão do governador aconteceu por conta da veiculação do beijo entre dois homens no material. Vale lembrar que desde junho a homofobia é considerada crime no Brasil, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que prevê a aplicação de pena em casos de ;praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito; em razão da sexualidade. O próprio STF cassou a decisão do Tribunal de Justiça (TJ) do Rio que permitia o recolhimento das obras.

[SAIBAMAIS]Num país que registra uma morte por homofobia a cada 23 horas, um feminicídio a cada duas horas e o assassinato de um jovem negro a cada 23 minutos, o que incomoda uma autoridade é a simples demonstração de amor. É uma inversão de valores sem tamanho, como bem disse o ator Fábio Porchat no Twitter: ;Não é o beijo gay que tem que ser impedido, é o homem batendo em mulher, o negro sendo chicoteado em supermercado, a desigualdade em cada sinal...;

Problemas na capital fluminense passaram a ser expostos pela população nas redes sociais enquanto Marcelo Crivella colocava toda a atenção na retirada dos livros da Bienal do Rio, com a alegação de estar ;protegendo os menores da nossa cidade; e apenas cumprindo a ;obrigação de fiscalizar;, jurando ;não ser censura, nem tão pouco homofobia;.

Com a hashtag #CrivellaCorreAqui, os moradores do Rio de Janeiro apontaram temas considerados por eles mais urgentes na cidade que não recebem a mesma dedicação do prefeito, como a existência de enormes buracos em avenidas em locais como Bonsucesso e Vila Isabel; o abandono da ciclovia Tim Maia na Avenida Niemeyer, que já desabou quatro vezes e continua sem solução; as péssimas condições de atendimento nas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs); as obras inacabadas do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT); e até problemas nas escolas, como a ausência de merendas por falta de gás, denunciada por um menino que participou do ato que distribui 14 mil exemplares de livros com temáticas LGBTs na Bienal.

Diante disso, fica a dúvida do que está sendo realmente feito para tirar o Rio de Janeiro do caos instalado nos últimos meses. Se quer proteger as crianças da capital carioca, Crivella precisa olhar para a cidade e para as tantas mazelas na segurança, na saúde e na educação.


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