Opinião

Não é comigo!

postado em 20/09/2019 04:14


Dois amigos caminhavam pela calçada em uma área residencial quando, de repente, um deles pisa em falso num buraco e quase torce o pé. De imediato, vira-se para o amigo e exclama: ;Cadê a prefeitura que não conserta essa calçada?;. Segue-se, então, um diálogo entre os dois em que não poupam impropérios contra a administração pública. Logo se forma uma rodinha com mais pedestres fazendo coro com a reclamação e na acusação à administração pública. Essa cena é muito comum, principalmente nas grandes cidades brasileiras. Mas, afinal, quem é responsável pela manutenção das calçadas?

Essa pergunta traz à tona uma característica presente na cultura nacional, qual seja a atitude confortável de eximir cidadãos e cidadãs de suas obrigações e responsabilidades. E não é coincidência que ao realizarmos uma simples pesquisa na nossa Constituição Federal encontremos 195 vezes a palavra ;direito; e apenas em 54 ocasiões a palavra ;dever;. Porém, mesmo quando citado no texto constitucional, o ;dever; está associado à obrigação do Estado e não das pessoas. Ironicamente, até mesmo no capítulo intitulado Dos direitos e deveres individuais e coletivos, os ;deveres; encontram-se apenas no título.

Faço essa introdução para tratar de um tema absolutamente contemporâneo que, apesar de alguns avanços, ainda não tem merecido a devida atenção da sociedade e do poder público. Refiro-me à caminhabilidade, uma medida quantitativa e qualitativa para identificar o quão convidativa uma área pode ser para se caminhar. Em outras palavras, o grau de acessibilidade oferecida a pedestres pelas calçadas e passeios existentes nas cidades.

Com o objetivo de mobilizar a sociedade e os governos para o tema, a data de 22 de setembro foi definida como Dia Mundial Sem Carro. E no dia 16 do mesmo mês tem início a Semana da Mobilidade, quando são realizadas atividades em defesa do meio ambiente e da qualidade de vida em cidades do mundo todo, procurando chamar a atenção para as condições de trânsito, em especial, das calçadas e passeios públicos. E como está o Brasil nesse contexto?

Para responder a essa pergunta, o Portal Mobilize Brasil realizou dois estudos. O primeiro, em 2012, quando foi avaliada a situação em 39 municípios distribuídos por 12 estados. A média final de todas as avaliações ficou em 3,47. Esse índice é bem abaixo de 8, nota mínima estabelecida pela coordenação do estudo. Em 2019, o estudo foi realizado em 27 capitais, examinando logradouros próximos a equipamentos públicos como escolas e hospitais. Os resultados foram divulgados nessa quinta-feira e a média nacional ficou em 5,71. Melhorou, mas ainda ficou longe da nota mínima.

Neste ano, a cidade de São Paulo foi a melhor pontuada com 6,93. E um dado merece atenção: naquele município apenas 17% calçadas são de responsabilidade do poder público. A responsabilidade pela conservação das demais é de moradores exatamente nos trechos em frente a seus imóveis. Infelizmente, na grande maioria das cidades em nosso país, particularmente nas de maior contingente populacional, a realidade é que moradores não cumprem sua obrigação. Em vez de fazerem a manutenção, preferem colocar a culpa na prefeitura. Enquanto isso, pessoas se acidentam, cadeirantes e deficientes visuais não conseguem transitar.

A fuga da responsabilidade ou do dever de cidadania não se restringe às calçadas. Ela está presente em diversos outros aspectos da vida em nossa sociedade. É o caso, por exemplo, da coleta seletiva de lixo. É comum vermos pessoas dizendo ;para que separar o lixo se depois tudo vai para o mesmo aterro sanitário?;. Ou então ;a companhia de limpeza não recolhe seletivamente, porque eu vou fazer?;. Ora, o que impede condomínios residenciais de estabelecerem parcerias com as diversas associações de catadores que se espalham pelo país?

Quem não ouviu aquela frase odiosa ;os garis estão aí pra recolher; dita por quem joga detritos no chão. E muitas vezes fazem isso estando próximos a cestas de lixo. Nessa hora vem à minha mente a lembrança dos torcedores japoneses que estiveram aqui na Copa do Mundo e nas Olimpíadas recolhendo o lixo produzido por eles logo após o final do jogo ou da competição.

Por fim, enquanto prevalecer entre nós a ideia de que o Estado é nosso pai e que cabe a ele nos prover todas as soluções, continuaremos patinando na perspectiva de construirmos cidades sustentáveis, modernas e inclusivas. E daremos razão aos versos de Lulu Santos: ;Assim caminha a humanidade, com passos de formiga e sem vontade;.

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