Opinião

Artigo: ''Além do bem e do mal''

Há ministros do STF com interpretações tão largas dos dispositivos constitucionais, que, a depender deles, nenhum condenado jamais será preso até que assim decidam.

Plácido Fernandes
postado em 23/09/2019 18:28
Sessão no Supremo Tribunal FederalA mais alta Corte de Justiça brasileira virou uma espécie de ;Posto Ipiranga;. Em vez de ser acionada apenas para decidir sobre questões em suposto desacordo com a Constituição, como ocorre no mundo todo, recorre-se a ela para tudo. E não é para menos: autodenominados ;garantistas;, há ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) com interpretações tão largas dos dispositivos constitucionais, que, a depender deles, nenhum condenado jamais será preso até que assim decidam. É como se as demais instâncias fossem desnecessárias, tivessem papel irrelevante, uma atuação de faz de conta. Para se ter uma ideia da aberração, sem paralelo no planeta, aos olhos de tais ;garantistas;, a presunção de inocência de uma alma se mantém intacta mesmo depois de a condenação ter sido confirmada em três instâncias.


Ressalte-se que a prisão em primeira ou segunda instância é praticamente regra nos países democráticos. No Brasil, além dos períodos ditatoriais, houve exceção apenas entre 2009 e 2016, por motivo que beira o surreal: mudou-se o entendimento, durante o julgamento de um habeas corpus no Supremo, para livrar da cadeia um fazendeiro que sacou a arma, em meio a uma exposição agropecuária no interior de Minas Gerais, e atirou cinco vezes num jovem. Tudo porque o rapaz teria ;cantado; a mulher dele. Preso em flagrante, o fazendeiro rico foi solto no mesmo dia e nunca pagou pelo crime, que acabou prescrevendo. Em 2016, o então ministro Teori Zavaski conseguiu, com argumentos óbvios, levar o plenário a restabelecer a prisão em segunda instância. Desde então, ;garantistas;, sob o aplauso de advogados criminalistas e de parlamentares suspeitos de atuar em causa própria, tentam recuperar a chave da cadeia.


Qualquer pessoa alfabetizada é capaz de entender o ;X; da questão. Basta ler o que estabelece o inciso LVII, do artigo 5; da Constituição: ;Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;. Ora, no Brasil, apenas a primeira e a segunda instâncias julgam ações penais de réus sem foro privilegiado. Depois da condenação nesses dois graus de jurisdição, já não existe presunção de inocência. E os recursos a tribunais superiores, como o Supremo e o STJ, em praticamente 100% dos casos, costumam ser meramente protelatórios. Tenta-se manter o réu solto não porque seja inocente, mas para que a pena prescreva sem que ele pague pelo crime que cometeu.


Há uma causa para a retomada da ofensiva dos ;garantistas;. É que, no meio do caminho, apareceu a Lava-Jato. Já não se trata apenas do raro caso de prisão de uma figura endinheirada. Mas de condenações de empresários corruptos e de políticos ladrões até então intocáveis. Ao contrário de uma batalha jurídica, o que se trava é uma guerra política e, em jogo, está a possível restauração da impunidade. Caso o STF decida pelo fim da prisão em segunda instância, bandidos do colarinho-branco, com dinheiro para pagar grandes bancas advocatícias, ainda que às custas do assalto aos cofres públicos, nunca mais serão presos. Traficantes, latrocidas, homicidas e feminicidas cheios da grana e de finos advogados também não irão em cana, é bom ressaltar. É muito triste que, por questão de afinidade com ladrões supostamente socialistas do bem, tanta gente trabalhe e torça pelo retrocesso. Pelo quanto pior, melhor.

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