Opinião

Artigo: ''Parem de jogar gasolina no fogo climático''

Desde que o Acordo de Paris, a indústria de combustíveis fósseis gastou em novas frentes de produção, mais de 10 vezes a quantia gasta em investimentos de baixo carbono

May Boeve*
postado em 23/09/2019 17:55
Ilustração de cabeça formada por chaminés que soltam fumaçaNesta segunda-feira, 23 de setembro, políticos de todo o mundo se reunirão em Nova York para uma cúpula de emergência sobre ação climática, convocada pelo Secretário Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres. A reunião não poderia ser mais importante. Como disse a jovem ativista climática Greta Thunberg, nossa casa está pegando fogo e é hora de agirmos. Para isso, os países precisarão, finalmente, falar sobre a fonte das chamas que estão consumindo nosso planeta: os combustíveis fósseis.

Por mais inacreditável que possa parecer, em todas as décadas de negociações internacionais sobre mudanças climáticas, nenhum país ainda se comprometeu firmemente a eliminar, de maneira progressiva, a produção de combustíveis fósseis, mesmo que isso seja exatamente o que a ciência demonstrou que precisamos fazer. O tão celebrado Acordo de Paris, firmado em 2015, sequer menciona as palavras ;combustíveis fósseis; ou ;carvão;, ou ;petróleo; ou ;gás;. É como se o mundo concordasse em combater o fumo, mas se recusasse a mencionar a palavra ;cigarros;. Para trilharmos o caminho da recuperação climática, primeiro precisamos admitir que temos um problema.

Enquanto isso, nosso vício contínuo em carvão, petróleo e gás está derramando combustível no fogo climático. Desde que o Acordo de Paris foi assinado, ou seja, em menos de quatro anos, a indústria de combustíveis fósseis gastou mais de US $ 100 bilhões em novas frentes de produção, mais de 10 vezes a quantia gasta em investimentos de baixo carbono. Um relatório recente do grupo de pesquisa Carbon Tracker concluiu que, somente no ano passado, o setor gastou US$ 50 bilhões em projetos inéditos, o que, obviamente, não é compatível com o objetivo do Acordo, o de limitar o aquecimento global a 1,5;C. As empresas de petróleo não são as únicas responsáveis: instituições financeiras, com destaque para bancos de investimento e megagrupos bancários, investiram US$ 1,9 trilhão em combustíveis fósseis desde Paris. Tudo isso apesar da conclusão do relatório do IPCC, o painel de cientistas que emite dados e recomendações sobre mudanças climáticas, de que devemos cortar pela metade nossas emissões de gases de efeito estufa na próxima década.
Não é de se admirar, portanto, que a abolição dos combustíveis fósseis tenha se tornado uma demanda cada vez mais central para o movimento climático global. É isso que as Manifestações Globais pelo Clima, que serão realizadas em 117 países, entre 20 e 27 de setembro, exigirão. Com ações em boa parte das metrópoles e capitais do mundo, incluindo Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro, os manifestantes multiplicarão o exemplo de Greta Thunberg, a garota sueca que ajudou a tornar a demanda por mudanças na política pelo clima um tema ainda mais forte. Falando por milhões de grevistas, a própria Greta clamou pelo fim dos combustíveis sujos, em uma reunião da ONU, no ano passado, e ainda mais diretamente aos executivos da indústria de combustíveis fósseis em Davos.

Essa demanda é, também, a mesma que fazem, há décadas, as comunidades na linha de frente dos impactos da mudança pelo clima em todo o mundo, como os povos indígenas. Por fim, é para isso que o movimento de desinvestimento em combustíveis fósseis e investimento em energias renováveis vem trabalhando. Nessa frente, já conseguimos pressionar mais de 1.100 instituições, que representam US$ 11 trilhões em capital, a reduzir ou eliminar seus aportes aos setores de carvão, petróleo e gás.

Agora, a demanda para acabar com o uso de combustíveis fósseis precisa passar das ruas para os corredores onde são tomadas as decisões de políticas públicas. Felizmente, há evidências crescentes de que essa mudança já está em andamento. Há dois meses, no Brasil, a pressão de grupos de agricultores, estudantes, cientistas e ambientalistas levou à aprovação de leis estaduais pioneiras, no Paraná e em Santa Catarina, para banir definitivamente de seus territórios o uso da nociva técnica de fraturamento hidráulico (fracking). Usado para extrair gás de camadas profundas do solo, o fracking causa danos à saúde pública, ao solo, à água e à produção de alimentos. Para continuarmos em exemplos próximos ao Brasil, a mobilização de jovens grevistas ligados ao movimento Fridays For Future foi fundamental para vitórias como a declaração de emergência climática pelo governo da Argentina, em 2019, e para a discussão acalorada sobre o tema, ainda em andamento, no Chile. Em outras partes do mundo, também vemos uma vontade significativa de avançar em direção à abolição total dos combustíveis fósseis.

No entanto, à medida que a conversa sobre a eliminação gradual de combustíveis fósseis se intensificou, o mesmo ocorreu com a reação da indústria e dos governos que eles controlam. Só para dar um exemplo, no recente Fórum das Ilhas do Pacífico, os líderes de 14 nações insulares, aquelas formadas por pequenas ilhas e, portanto, muito vulneráveis à elevação do nível dos oceanos, esperaram 15 horas para tentar incluir no comunicado diplomático final a menção à necessidade de ;eliminação de carvão;. Logo em seguida, a menção foi eliminada por pressão da Austrália, que está empenhada em aumentar suas exportações de carvão. Simultaneamente à próxima Cúpula do Clima da ONU, os CEOs das maiores empresas de petróleo e gás do mundo realizarão sua própria reunião, em um local não revelado de Nova York, supostamente para falar sobre redução de emissões. Conhecemos a verdadeira agenda: reduzir a demanda pública pela transição energética urgente de que o mundo precisa.

As empresas de combustíveis fósseis adorariam que a cúpula de emergência que começa nesta segunda-feira produzisse outra rodada de ;compromissos de longo prazo; e promessas vagas. Essas companhias também adorariam que estivéssemos debatendo apenas sobre canudos de plástico e se deveríamos ou não comer hambúrgueres. Isso apesar de as petroleiras terem conhecimento das mudanças climáticas desde os anos 1970. Em vez de deixar que as expectativas desses CEOs se cumpram, a sociedade civil garantirá que os políticos reunidos a partir desta segunda-feira, em Nova York, se concentrem em um dos desafios mais necessários do mundo hoje: eliminar de imediato o uso de energias sujas. Porque a única maneira de apagar o fogo climático é parar de jogar combustível nessa chama.

*May Boeve é diretora executiva da 350.Org

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