Jorge Fortoura*
postado em 28/09/2019 09:00
A notícia do falecimento de Jacques Chirac, o último dos gaullistas históricos, nesse começo de outono europeu, bem mais que necrológio ilustre, assinala o caso de todo um ciclo, de valores, de ideias e de personagens. Da França da ;grandeur; de Charles de Gaulle, que enfrentou e superou, airosa e heroica, os perigos da guerra fria, como alvo atômico evidente, no que teria sido a Pearl Harbour da terceira guerra mundial. A França do substrato cultural do Ocidente, da Enciclopédia, do Iluminismo, do liberalismo e da república, da democracia moderna, a qual todos gostaríamos de pertencer. Da França, a segunda pátria de todos os amantes da liberdade.Jacques Chirac foi o continuador e herdeiro da política com valores personalistas e conservadores do velho general, porém à sua maneira, com dicção e finesse, mas, ao mesmo tempo, com a bonomia popular do homem simples e sorridente das esquinas, cordial e confiável. Somando-se a tudo isso, pequenos deslizes pessoais, o que o fazia exemplo raro de produto eleitoral infalível. Europeísta de primeira hora, também aqui discrepou de seu mentor, tendo sido um dos promotores do fortalecimento da União Europeia, na aliança franco-germânica que ajudou a forjar em anos de ouro das comunidades, sempre a lembrar que também a Europa moderna nasceu em Paris, em 1957, com seu tratado fundacional do Carvão e do Aço.
Animal político, Chirac foi presidente da república entre 1995 e 2007, depois de vertiginosa carreira, em que se destacou como primeiro-ministro e, principalmente, como prefeito de Paris fadado à eternidade: até hoje os parisienses são orgulhosos de sua ;água de torneira;, solicitada com garbo mesmo em restaurantes estrelados: ;l;eau de Chirac, si vous plait!” Não isento de derrotas e de fracassos políticos monumentais, a par de condutas condenáveis e mesmo condenadas pela Justiça, apesar dos pesares marcou sua vida pública com posições firmes e respeitáveis, como contra a guerra do Iraque e ao reconhecer crimes nazistas perpetrados na França (e pela França de Vichy) contra uma das mais importantes comunidades judias da velha Europa. Em 2014, recebeu a maior das homenagens que o inconsciente coletivo francês pôde conferir a seus heróis maiores, com seu nome dado a importante museu, o de Quai-Branly, às margens do Rio Sena e próximo à Torre Eiffel.
Em sua visita de estado à Brasília, nos primeiros anos 2000, tive a oportunidade de secretariar, em tarde inesquecível, um encontro entre Jacques Chirac e Marco Maciel, ambos muito assemelhados em suas atuações públicas e crenças políticas liberais, como verdadeiros estadistas contra majoritários, em mundo à época recalcitrante em aceitar muitas das razões óbvias do iluminismo e do mercado inelutável.
Depois de deixar o poder, Jacques Chirac continuou popular e partícipe de campanhas eleitorais importantes, sempre motivo de atenção e de fascínio dos concidadãos. Apesar de ter sido o grande nome da política conservadora na França moderna, o opositor respeitado e adversário histórico do socialista François Mitterrand não hesitou em, já aposentado, apoiar a eleição do também socialista François Hollande, contra o conservador Nicolas Sarkozy, o que causou muitas críticas em seu círculo, até de sua mulher, Bernadette.
Homem da rua, conhecedor do barulho e do cheiro das ruas como disse certa vez, mesmo a paixão pelo futebol não lhe foi estranha, desde a militância no time mais popular da França ; óbvio e inconfessável trampolim político à prefeitura de Paris ; até a vitória na Copa do Mundo em 1998. Ele, em seu cenário ideal, a poltrona número um da tribuna de honra do Stade de France, o presidente da república e seu povo. Há quem diga que, desde a queda da Bastilha, nunca houve domingo tão feliz em Paris.
*Advogado