Almir Pazzianotto*
postado em 03/10/2019 09:45
Aghata Vithória foi assassinada. Se o policial atirou com o ânimo deliberado de matar, ou assumiu o risco de fazê-lo, a esta altura pouco importa. O projétil de grosso calibre atingiu a menina de oito anos pelas costas e a matou, em mais uma das intermináveis tragédias que abalam o Rio de Janeiro. Ao entregar à polícia pistolas, fuzis, metralhadoras, adquiridas com o dinheiro recolhido ao erário pelos contribuintes, o Estado não lhe concede o poder de matar. As Forças Armadas, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, são mantidas para a defesa da Pátria e a garantia dos poderes constitucionais. Polícias militares e civis existem para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.Quem ingressa na polícia sabe que estará exposto ao risco de ser ferido ou morto em confronto com marginais. Crianças que vão à escola; mulheres que se dirigem ao supermercado ou à farmácia; o empregado que sai de casa para o trabalho, são pessoas pacatas e inofensivas que devem estar seguros de que as forças policiais estão nas ruas para preservar a ordem e protegê-los.
Os fatos revelam que o Rio de Janeiro tem comunidades sob o controle de milícias ou de facções criminosas. Milicianos, traficantes e matadores agem à margem da lei. Desprezam a Constituição, o Código Penal, o Código de Processo Penal, o Estatuto do Desarmamento. Bandidos não usam armas registradas e não se preocupam em obter autorização de porte da Polícia Federal. Adquirem armas e munições contrabandeadas e delas fazem uso de acordo com a necessidade do momento. Atiram a esmo sem pensar nas vítimas de balas perdidas.
A polícia não deve agir assim. Se o fizer, procederá como bando armado e não será diferente de milicianos e traficantes. O tiro de pistola 9mm tem alcance efetivo de 100/200 metros. A bala do fuzil 7.62 (utilizado pela polícia) poderá abater alguém a 600/900 metros de distância. Quem dispara revólver, pistola, fuzil ou metralhadora, em local densamente habitado, assume o risco de alvejar inocente. O direito penal define esse tipo de conduta como dolo eventual. Prescreve o art. 18 do Código Penal que há crime doloso ;quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;. Assim também o diz o art. 33, I, do Código Penal Militar.
Colocada entre fogos cruzados, a população não tem como se defender. Não dispõe de meios para reagir aos criminosos, ou para se proteger contra policiais corruptos e violentos, Se delatar os criminosos sofrerá pronta retaliação; quando dominada pelo medo se cala, é acusada de conivente.
A morte de Aghata Vithória não encerra o histórico de violência do Rio de Janeiro. Outras aconteceram como o assassinato do chefe de família e músico Evaldo dos Santos Rosa, o Manduca. Foram dezenas de tiros contra homem desarmado, acusado de invadir área sob jurisdição militar, conforme declarou o comandante da unidade incumbida do patrulhamento.
O Brasil não está em guerra. A luta que trava é contra a miséria, a fome, o desemprego, a corrupção. As favelas cariocas não são redutos de criminosos. São comunidades pobres, surgidas no começo do século passado, onde se abrigam famílias de reduzido poder aquisitivo, sem dinheiro para aquisição de apartamento em bairros nobres. Renato Meirelles e Celso Athayde, autores de Um País chamado favela, registram: ;O termo favela tem origem na Guerra de Canudos, conflito sociorreligioso ocorrido entre 1896 e 1897, no interior da Bahia, que acumulou como vítimas, segundo estimativas, 20 mil sertanejos e 5 mil membros do exército republicano. Finalizada a pugna, muitos soldados aguardavam gordo prêmio pelo triunfo, parte dele na forma de moradia (...) Logo, a burocracia e o descaso reduziram batalhões de fardados a legiões de desocupados, sem soldo e sem chão;. A solução consistiu na invasão de morro situado na zona portuária do Rio, que tomou o nome de favela em memória de posição ocupada durante a campanha contra Antonio Conselheiro (Ed. Gente, SP, 2014, pág. 39).
O favelado é vítima do sistema. Oprimido por milicianos e traficantes, e hostilizado pela polícia, enfrenta o preconceito e a discriminação para sobreviver, cuidar da família, melhorar de vida. É irreparável a perda da vida por qualquer criança. Poucas são as esperanças, porém, de que a morte de Aghata Vithória não tenha sido apenas mais uma na tragédia do Rio de Janeiro.
*Advogado. Foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho