Humberto Pellizzaro*
postado em 07/10/2019 06:00
Idealizado por Anísio Teixeira, jurista e educador, o Centro Integrado de Ensino Médio (Ciem), da Universidade de Brasília (UnB), iniciou como atividades em 1964, no ambulatório atual do Hospital Universitário. Com uma proposta evolucionária e pedagógica, priorizava o protagonismo, a liderança e a capacidade de julgamento, em vez da memorização. Ao ler, no Correio (5/9), um artigo acerca do Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro, decidi fazer um contraponto, narrando uma experiência do Ciem. De um lado, uma disciplina tradicionalista fazer Pedro II; do outro, uma liberalidade inovadora fazer Ciem.Não declinarei, embora ex-alunos do Ciem tenham se tornado grandes empresários, gestores de estatais, políticos famosos e até um presidente da República. Outros se destacaram nos esportes e nas artes, em nível nacional e internacional. Levo ao conhecimento das novas gerações aquela experiência, inolvidável para quem dela participou, espero que, um dia, outros se inspirem para recriá-la.
Em contraste à decantada disciplina do colégio carioca, no Ciem havia uma liberdade nunca vista. Isso incomodava o regime militar então vigente. No Ciem, não havia uniforme. Chamou-me a atenção a quantidade de alunos fumantes. Tínhamos uma imagem de libertários, não estudantil. Sentíamo-nos universitários. Havia uma prova para ingresso no Ciem. Muitos diziam que quem passasse no exame seletivo estava com um pé na UnB. Era raro um aluno do Ciem não passar no vestibular. Houve até um projeto para isentá-lo do vestibular.
As aulas começavam às 7h. Os atrasados não entravam em sala. Às 11h, um intervalo. Muitos almoçavam no restaurante da UnB, de madeira. A comida tinha excelente qualidade. Havia uma ala de residências, onde moravam docentes e muitos alunos da UnB. Alguns tornaram-se proprietários de escolas na cidade. Tínhamos uma grande interação com eles, amigos que eram nossos confidentes. Cada grupo de alunos tinha um ;conselheiro;, que nos assistia permanentemente.
No Ciem, não havia as tradicionais provas nem deveres de casa. Cada um seguia o seu ritmo, com certa liberdade de escolher matérias, num pioneiro sistema de créditos. As avaliações eram feitas diariamente. Foi quando entendi o sentido de apreender. A monografia ; trabalho final de curso ; era obrigatória para aprovação no ciclo de três anos, o que nos exigia bastante.
Duas tardes por semana, o mais interessante, para a maioria de nós, era uma espécie de curso profissionalizante: Práticas Educativas Vocacionais (PEV), em forma de ;clubes;. Qualquer aluno, com um mínimo de colegas, poderia ir a um clube. Havia clubes de música, eletrônica, mecânica, fotografía, jornalismo e outros. Estagiávamos nas empresas da cidade.
O ponto alto das atividades mensais era o congraçamento, com presença obrigatória de alunos, professores e funcionários. Saímos, com imensa alegria e entusiamo, para um clube e, lá, passávamos o dia. Organizávamos atividades esportivas, saraus de artes e tudo mais que viesse à cabeça. Deve ser mencionado que muitos alunos eram filhos de políticos e de pessoas abastadas. Não faziam concurso de ingresso, beneficiados pela transferência para Brasília. Todas as manhãs, era um desfile de carros oficiais na porta da escola. Havia uma clara distinção de classes sociais. Começei a entender que a sociedade era tremendamente desigual e injusta.
O grêmio estudantil tinha acirradas disputas eleitorais, com grande participação no dia a dia. Em 1968, iniciou-se o ocaso do Ciem, com a invasão da UnB pelos militares. O colégio teve alunos presos. Havia uma insatisfação entre os estudantes. Iniciou-se uma rebeldia em relação às regras, greves etc., que culminou com a expulsão de dezenas de alunos. A partir daí, a direção foi perdendo o controle da situação. Uma das mudanças que os insatisfeitos queriam era o fim da prova de seleção para ingresso no Ciem. Aos poucos, o colégio foi se tornando comum e passou para o governo do Distrito Federal, com o seu fechamento definitivo em 1971, o ano da morte de seu idealizador.
Enquanto ordem houve, opiniões opostas conviveram, com direito à ampla manifestação. No momento em que se instalou a desordem, afrontou-se um dos pilares da escola: o respeito à pessoa. Sempre haverá os oponentes. Cada um com o seu papel no drama da vida. Cada ser humano é único e tem o direito de fazer suas escolhas. Ninguém é vítima das circunstâncias, senão de si mesmo. E a libertade é inseparável da responsabilidade. Ficou-me a certeza de que escola alguma educa o jovem, por melhor e mais avançada que seja. A sua índole é formada, sem recesso, no lar, pelo exemplos dos pais. A escola complementa a educação básica e supre a instrução, a formação para a vida profissional e social. Citando Paulo Freire, outro expoente contemporâneo: ;Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é virar o opressor;.
*Engenheiro eletrônico, desportista, autodidata em medicina oriental