Opinião

Artigo: Sem rota de fuga

Viver é não fugir. Assim disse Fernanda Montenegro, um farol aceso para qualquer escuro da história brasileira

Ana Dubeux
postado em 13/10/2019 04:14
Atriz Fernanda MontenegroFazer 90 anos é diferente de viver 90 anos. Qual a diferença? Creio que é o sentido que você impõe à própria existência. Fazer é o passar dos dias e noites. Viver é sentir que essa passagem de tempo tem completude, intensidade, integridade. Sim, viver é não fugir. Assim disse Fernanda Montenegro, um farol aceso para qualquer escuro da história brasileira (como disse a filha Fernanda Torres, com outras palavras, em recente artigo). Às vésperas de completar 90 anos, a nossa grande atriz lança um livro e escreve algo assim:

;Eu posso dizer que não tive tempos mortos. Usufruí a minha vida sem sofreguidão, sem histeria. Sou uma privilegiada. Em primeiro lugar, por estar vivendo há tantos anos com essa energia e ter achado as pessoas com quem atravessei uma vida. Não vejo meu passado com dor, com dificuldade... e houve. Eu não sei o que aconteceu na minha trajetória que me botou aqui, só sei que trabalhei muito. Eu nunca fugi;.

Fiquei na minha cabeça com a expressão ;Não tive tempos mortos; e me apeguei à essência de Fernanda ; ela nunca fugiu. Viver assim cada vão momento, sem fugas, descaminhos, com verdade e com intensidade, talvez seja a raiz de sobreviver à própria história, com seus altos e baixos, com a lucidez preservada e sensação de chegar a essa idade cheia de plenitude. É difícil caminhar sem lampejos de pessimismo, sem as lamentações eternas, sem a valorização extrema do sofrimento. É muito difícil aceitar que não é passeio nossa trajetória por aqui. Fernanda disse a palavrinha mágica: trabalho.

Gente igual a ela, com tanto amor pelo ofício, transforma o mundo. Por meio da arte, mas também por ser quem é. Lembrei-me de duas outras mulheres incríveis que amo e que, por coincidência ou não, são de mesma geração e fazem aniversário bem próximo do dia de Fernanda: Clóris Oliveira Brasil e Socorro Vale. Percorrer o fio da vida em equilíbrio, mesmo com as oscilações cotidianas, não é para qualquer um, mas deveria ser. Talvez por isso as três sejam exemplo, embora sem a pretensão de sê-lo.

Eu sempre trabalhei muito, às vezes mais do que deveria. Até hoje, o cansaço me ronda. Mas não acredito em outro meio que possa me proporcionar mais prazer do que o jornalismo. Aos que sempre apontavam o dedo, de forma justíssima, para os meus excessos, eu tentava me justificar. Hoje, não mais. Sou o que sou; fiz o que fiz. E, como Fernanda, Clóris e Socorro, eu nunca fugi.

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