Opinião

Qual futuro do trabalho?

Há razoável consenso na comunidade científica sobre as mudanças provocadas pela tecnologia na vida dos trabalhadores

Renan Bernardi Kalil*
postado em 17/10/2019 09:00
[FOTO1]Em setembro, o secretário de Trabalho e Previdência, Rogério Marinho, anunciou a instalação do Grupo de Altos Estudos do Trabalho (Gaet), que terá o objetivo de analisar o mercado de trabalho brasileiro e fazer um diagnóstico que servirá de base para o debate sobre o futuro do trabalho no Brasil. Frequentemente, a história que nos contam sobre o futuro do trabalho é alguma versão do apocalipse robótico.

O avanço da automação e da adoção de robôs nas empresas levaria à substituição dos trabalhadores por máquinas, diminuiria a oferta de postos de trabalho, reduziria o valor dos salários e tornaria parte considerável da força de trabalho obsoleta. Essa é uma visão determinista na qual a tecnologia é componente externo às relações socioeconômicas e ela, e tão somente ela, é capaz de determinar a realidade. A tecnologia seria a força condutora de uma marcha inexorável para um futuro unívoco.

Outro olhar para a relação entre trabalho e tecnologia é possível. As inovações tecnológicas não são forças isoladas e produzidas por valores neutros e por interesses sem vinculação com as relações de poder instituídas. Elas fazem parte do sistema socioeconômico e são criadas e utilizadas conforme as suas regras. Ou seja, tecnologia, instituições e ideologia se inter-relacionam, influenciando e sendo influenciadas entre si, produzindo efeitos diretos em nossa vida e, consequentemente, no mundo do trabalho.

Há razoável consenso na comunidade científica sobre as mudanças provocadas pela tecnologia na vida dos trabalhadores. A introdução de novas tecnologias geralmente altera o trabalho humano de três maneiras: substituindo-o, complementando-o e criando atividades. A maior parte das pesquisas que se popularizaram ; e ajudaram a disseminar o apocalipse robótico ; focaram no primeiro aspecto. Contudo, a inovação tecnológica pode complementar as habilidades criativas e cognitivas dos trabalhadores, potencializando-as. Além disso, novas tecnologias abrem espaço para a geração de empregos, seja pela demanda por novas tarefas que requerem o uso do conhecimento, a criatividade ou o julgamento dos seres humanos, seja por um círculo virtuoso proporcionado pelo aumento da produtividade.

Para além da automação e dos robôs, outro tipo de inovação tecnológica que está repercutindo no mundo do trabalho são as plataformas digitais. Trata-se de infraestruturas que funcionam a partir da lógica da intermediação, promovendo a conexão entre consumidores, trabalhadores e empresas. Apesar de sua disseminação em vários domínios de circulação e de seus diferentes modelos, a maior parte delas opera no setor de serviços. No caso específico dessa nova tecnologia, há grande espaço para a geração de empregos: somente a Uber, uma das plataformas mais famosas do mundo que oferece serviço de transporte, possui quase 4 milhões de motoristas registrados, dos quais mais de 600 mil no Brasil.

Nesse contexto, existem aspectos que devem ser levados em consideração ao tratarmos da criação de postos de trabalho. É provável que parcela deles nem sequer exista e demandem habilidades pouco desenvolvidas na atual força de trabalho. Para viabilizar uma transição, inserir os trabalhadores em novas posições e preparar as novas gerações, é necessário contar com um fortalecido sistema público de emprego (responsável por articular o pagamento de direitos a trabalhadores desempregados e de formar e intermediar a mão de obra) e um modelo educacional apto a desenvolver novas habilidades.

A regulação do trabalho deve oferecer condições dignas e a aplicação do direito do trabalho, para que os trabalhadores obtenham salários decentes e uma jornada razoável, evitando obrigar as pessoas a realizarem atividades por longas horas em troca de baixos valores. Há iniciativas nesse sentido em alguns países. Nos EUA, o governador do estado da Califórnia recentemente sancionou o Projeto de Lei AB5, que permitirá classificar os trabalhadores sob demanda por meio de aplicativos, como os motoristas da Uber, como empregados.

Em todos os casos, é essencial dar voz efetiva aos trabalhadores, garantindo que suas organizações coletivas participem das decisões sobre o desenho das políticas públicas e de sua proteção jurídica. Nesse processo, os sindicatos devem se valer das inovações, como o uso de algoritmos para os auxiliar nos processos de negociação coletiva.

Os trabalhadores não estão condenados a um futuro distópico e sem trabalho. As consequências dos avanços tecnológicos dependerão, em grande medida, das escolhas que começarmos a fazer agora ; nas escolas, políticas públicas, na regulação das empresas e também do mercado de trabalho. Portanto, é central que a sociedade se questione: que futuro do trabalho queremos?


*Doutor em direito pela Universidade de São Paulo (USP) e procurador do Trabalho


Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação