Claudia Dianni
postado em 19/10/2019 11:10
[FOTO1]Recentemente, o presidente Jair Bolsonaro assinou os decretos 10.046 e 10.047, que criam o Cadastro Base do Cidadão e o Comitê Central de Governança de Dados. Pode parecer o fim do calvário que é reunir uma série de documentos, sempre e tudo outra vez, cada vez que o cidadão precisa de um serviço público. Só que não.Da forma como a coisa foi feita, rumo às inevitáveis mudanças para a transformação digital do governo, ficou mais parecido com o que poderia ser chamado de sistema de vigilância.
O governo vai reunir todas as informações dos brasileiros em uma base de dados única. Tudo mesmo: RG, CPF, título de eleitor, informações laborais e o que foi chamado de dados temáticos, que são características biológicas e comportamentais captadas para reconhecimento automatizado: palmas das mãos, digitais, retina, íris, rosto, voz e até maneira de andar.
Ótimo, racional e eficiente não fossem os detalhes, muitas vezes conhecidos como endereço do diabo. Esses dados serão compartilhados entre agências de governo. Mas a ideia não é essa? Sim. O problema é que os decretos contrariam a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), n; 13.709, inspirada na legislação da União Europeia. Aprovada em agosto de 2018, a lei entra em vigor a partir de agosto de 2020.
Essa Lei, ou Código de Defesa da Privacidade, que foi amplamente discutida pela sociedade, dispõe sobre o tratamento de dados pessoais com o objetivo de proteger direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e estabelece regras para empresas e organizações para que o cidadão tenha mais controle sobre o tratamento e destino dados às suas informações pessoais.
De acordo com LGPD, dados só devem ser utilizados para as finalidades específicas para as quais foram coletados, com a prévia informação aos titulares. Além disso, o uso do dado deve se limitar à necessidade, com a devida exclusão depois. E, em caso de vazamento, deve-se avisar a autoridade competente e penalizar o abuso. Tudo muito positivo.
Outro ponto que preocupa, no caso da criação do cadastro, é que o Decreto 10.047 cria brecha para compartilhar dados com institutos de pesquisa. Ora, empresas privadas também têm institutos de pesquisa. Exemplos para confirmar as preocupações com relação à concentração de tanta informação sensível não faltam, como os casos da Cambridge Analytica, do vazamento de informações da Receita Federal aqui no Brasil, e dos dados públicos de 16 milhões de equatorianos que vazou em Miami no mês passado, para citar alguns.
Se a ideia é tornar os serviços públicos mais eficientes, deve-se reunir todos os serviços públicos em um único endereço digital, para facilitar o acesso dos cidadãos aos serviços, de forma que ele tenha controle sobre o uso de seus dados. E não o contrário, ou seja, o governo concentrar tanta informação e decidir o que fazer com elas.
Estônia, modelo mundial de governo digital, fez isso. Tudo bem que lá vivem apenas 1,2 milhão de pessoas, mas, a Índia, onde vivem 1,2 bilhão, imitou. Então, é possível o Brasil se inspirar em boas práticas éticas e seguras. O cadastro brasileiro vai ficar mais parecido com as práticas de vigilância do governo chinês, que monitora a forma de caminhar dos cidadãos.
Em julho, o presidente Bolsonaro sancionou a lei que cria a Autoridade Nacional de Proteção de Dados, que ficará vinculada à Presidência e prevê um Conselho Nacional de Proteção de Dados. Dada a ojeriza já demonstrada pelo atual governo à participação social e científica em conselhos, é bom ficar de olho na composição do novo Conselho.
Aliás, atenção também no Supremo Tribunal Federal no próximo dia 21 de novembro, quando a corte decide sobre o compartilhamento de dados da Unidade de Inteligência Financeira, ex- Coaf, vedado pelo presidente do STF, ministro Dias Toffoli, a pedido do senador Flávio Bolsonaro.
A ver se de um lado teremos uma ferramenta de supervigilância do cidadão, à disposição de um governo com traços autoritários, e, de outro, proteção para informações sobre crimes do colarinho branco. Perigoso.
Pressões internacionais, como as do Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (GAFI), da OCDE, anunciadas ontem, podem ajudar a mudar o rumo. Esperemos que haja pressões também da sociedade, e da comunidade internacional, para proteger os dados pessoais e evitar a vigilância dos cidadãos.