postado em 21/10/2019 04:18
Quando crianças, sempre tivemos a curiosidade de entender por que razão os cães corriam atrás dos carros que passavam na rua. Talvez fosse a necessidade de se impor, marcar território, mesmo diante de algo ameaçador e muito maior do que ele. Mas, quando por algum motivo o carro parava, o cachorro ficava paralisado sem saber o que fazer, ou simplesmente fugia de medo.
Essa cena sempre me vem à mente quando observo as reações do sistema político, notadamente do Poder Legislativo, diante da completa subversão do que se costumava chamar de presidencialismo de coalizão. A primeira providência dos governos recém-eleitos era garantir a formação de uma base de apoio, antes mesmo de apresentar qualquer proposta legislativa para discussão no Congresso Nacional.
Era o pré-pago parlamentar: comprava-se antes, para usar depois. A prática ficou tão arraigada na vivência política do país que logo descambou para a prática da corrupção, pura e simples, uma vez que não havia compromisso com ideias e programas.
Isso explica, em parte, a estupefação do Congresso diante do modus operandi do presidente Jair Bolsonaro, que negou a tradicional formação dessa base de sustentação nos moldes até então conhecidos. As medidas provisórias, por exemplo, sempre representaram a predominância do Executivo sobre o Legislativo.
Lula editou 417, numa média de quatro a cinco por mês. Dilma editou 202. Michel Temer mandou 143. Até outubro de 2019, Bolsonaro editou 27, com média mensal de dois. Goste-se ou não, o atual governo não pode ser taxado de autoritário no trato com o Congresso Nacional, pois deliberadamente abriu mão de formar essa maioria a seu favor pelos métodos tradicionais.
As derrubadas de vetos também são emblemáticas. Até 2013, os vetos presidenciais sequer eram analisados, o que gerou um estoque de milhares deles dormitando nas gavetas do Congresso. De lá para cá, Bolsonaro foi o que mais teve vetos derrubados. E isso não parece incomodá-lo.
Estratégia ou falta de habilidade política? Isso pouco importa. O curioso é que, assim como o cachorro que corre atrás do carro, o Parlamento parece não saber o que fazer diante da autonomia inesperada que lhe deu o Executivo.
O próximo desafio é garantir que a liberdade seja usada em favor da sociedade, e não para exploração política e chantagens institucionais travestidas de interesse público. Agora, de fato, a bola está com o Legislativo. O fato é que, por muito tempo, o Congresso esqueceu que dá a última palavra no processo legislativo. Com essa mudança, ele está mais do que nunca sob a cobrança permanente da sociedade.
Em outras palavras: o que vemos neste novo Brasil é democracia em estado puro. Não há nada que legitime mais uma democracia do que a cobrança legítima da sociedade sobre a atuação das suas instituições, além do ressurgimento do debate com contraponto, onde antes só havia ponto. Qualquer coisa diferente disso não é democracia. E isso vale para todos os poderes.