postado em 21/10/2019 04:18
OSupremo Tribunal Federal está mais uma vez diante de uma questão importante para a ética concorrencial e para a economia do Brasil. Trata-se do processo de dezembro de 2018 de cassação da inscrição estadual de substituto tributário em São Paulo da Refinaria Manguinhos (Refit), cuja decisão, ainda sem data para julgamento, está a cargo do ministro Dias Toffoli. O pedido de cassação foi feito pela Procuradoria-Geral de São Paulo, apontando que a refinaria tem débito de R$ 3,4 bilhões em impostos, considerando somente o que já está inscrito na dívida ativa.
Além da necessidade de total transparência e do levantamento de informações idôneas, que possam colaborar para que a decisão certa e justa seja alcançada, a questão que o processo levanta é a mesma que, em meados de 2005, surgiu em relação à fabricante de cigarros American Virginia: pode uma empresa devedora de impostos ter a inscrição cassada? A resposta natural, num ambiente salutar de negócios, seria não. Afinal, uma empresa que respeite a lei não pode ser impedida de operar por ter, eventualmente, dívidas com o Fisco. Porém, a situação muda completamente quando a empresa usa a inadimplência de impostos como modelo de negócio para conquistar mercado e prejudicar não apenas os competidores honestos como toda a sociedade. Essas empresas não podem continuar a atuar do mercado, lesando de modo permanente o Fisco. É situação diferente: o contumaz não é um devedor eventual e, assim, deve ter um tratamento diverso.
Importante salientar que, no caso de Manguinhos (Refit), a punição não é proibir a operação em São Paulo, mas mudar a sistemática de emissão de notas, pagamento e recolhimento de tributos. Na prática, em vez da declaração mensal, como é feito atualmente, a refinaria precisaria declarar e pagar o ICMS a cada venda de mercadoria, usando um sistema chamado Guia Nacional de Recolhimentos Especiais (GNRE), o que facilitaria a fiscalização pelo Estado.
No mais recente requerimento ao STF, a PGE-SP aponta que, apenas em julho deste ano, Manguinhos (Refit) declarou e não pagou mais de R$ 47 milhões em ICMS. A prática se repete mês a mês em um eterno looping de ;cheques sem fundos; em um processo lesivo sem-fim.
Em parecer sobre o assunto, a então procuradora-geral da República Raquel Dodge foi contundente contra o devedor. No despacho, Dodge argumenta que ;a cobrança do devedor contumaz é medida que evita o desequilíbrio concorrencial no mercado de combustível e protege o patrimônio público;. A procuradora ainda levanta outra questão essencial: a atuação dos devedores contumazes pode tornar ainda pior a grave crise financeira pela qual passam os estados.
Em 2018, a economia subterrânea movimentou no Brasil R$ 1,17 trilhão mediante a produção de bens e serviços não reportada ao governo deliberadamente, de acordo com o levantamento realizado pelo Etco/FGV. Ao analisar apenas o setor em que a refinaria atua, o de combustíveis, estima-se que a União e os governos estaduais deixaram de arrecadar mais de R$ 7,2 bilhões em tributos nesse mesmo período. O motivo? As recorrentes práticas de sonegação e inadimplência.
Presente no setor de combustíveis e em todos os que são grandes arrecadadores de impostos e movimentam a economia nacional, os devedores contumazes se organizam para sonegar e, assim, obter preços competitivos de forma ilícita. Os efeitos para a economia são danosos e inúmeros. A curto prazo, está a perda de competitividade e falência das empresas que atuam corretamente. A médio prazo, o mercado é desestruturado. A longo, diminuem os investimentos, e o setor fica enfraquecido, levando à redução de empregos e mais prejuízos à economia do país.
De volta a 2005, vimos que a decisão de cancelamento do registro da American Virginia não significou a violação de um direito, mas impediu que a fabricante desfrutasse da posição conquistada de forma ilegal: o não recolhimento proposital do tributo devido. Na ocasião, o ministro Lewandowski, em seu voto, afirmou com veemência que ;(...) estamos diante de uma macrodelinquência tributária reiterada. São firmas que se dedicam a essa atividade de forma ilícita, na clandestinidade. Quando o Fisco fecha uma dessas empresas, imediatamente outra é reaberta, e assim sucessivamente, numa concorrência absolutamente predatória. Não estamos diante de uma situação normal em que a empresa que atua licitamente merece toda a proteção constitucional;.
Vale ressaltar que o objetivo não é criminalizar empresários de boa-fé, que estejam momentaneamente inadimplentes. Para esses, continuarão existindo proteções e filtros. Entretanto, é necessário que o Estado aja para coibir e punir adequadamente empresas que notoriamente utilizam da sonegação de impostos como estratégia de negócio. Uma decisão favorável do ministro Toffoli à cassação de Manguinhos (Refit) abrirá um precedente importante para o combate ao devedor contumaz, um anseio antigo de inúmeros setores da economia.