Opinião

Artigo: Orwell no Supremo

O que Orwell chamou de "novilíngua", artifício usado por regimes totalitários para rescrever a história, hoje chamamos vulgarmente de "narrativa"

Plácido Fernandes
postado em 28/10/2019 09:05
[FOTO1]No premonitório 1984, um clássico do século 20 e um dos mais influentes romances de todos os tempos, George Orwell, além de antecipar em mais de 50 anos o Big Brother, trata de um tema atualíssimo: a manipulação da linguagem de tal forma que determinadas palavras passam a ter outro sentido. É o que parece ocorrer hoje com a Constituição brasileira. Na boca de meia dúzia de ministros do STF, o inciso LVII do artigo 5; ganhou novo significado, entrando em contradição ou usurpando atribuição do inciso LXI, do mesmíssimo artigo 5;.

O que Orwell chamou de ;novilíngua;, artifício usado por regimes totalitários para rescrever a história, hoje chamamos vulgarmente de ;narrativa;. Quem emplaca a ;narrativa; vitoriosa ganha a batalha da opinião pública. Ou, pelo menos, da opinião publicada. Na internet e na maioria dos jornais e revistas impressos, impõe-se a ;narrativa; de que a Constituição, gostemos ou não, garante a inocência e proíbe a prisão de condenados em instâncias anteriores até que se esgote o último recurso possível no STF.

Antes, vamos ao que diz o inciso LXI, do artigo 5;, da Carta Magna: ;Ninguém poderá ser preso salvo em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente;. No popular, ;autoridade judiciária competente; quer dizer a juíza ou o juiz do caso. No inciso, vejam bem, não está escrito que ela ou ele só pode decretar a prisão após o último recurso no STF. Está? Não, não está.

Então, por que essa celeuma? Porque a elite jurídica brasileira, em causa própria, sobretudo em defesa da fortuna que bandidos do colarinho branco pagam a advogados para se manterem longe da cadeia, faz leitura enviesada do inciso LVII, em que se lê: ;Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;. Está escrito que ninguém será preso? Não.

Mas essa elite alega que ;trânsito em julgado; significa que o réu continua inocente e deve ficar solto até o último recurso se esgotar no STF. É uma deslavada mentira. Por quê? Porque nem o STJ nem o STF ;julgam; crimes de réus sem foro privilegiado. Apenas recursos no qual avaliam se a lei foi corretamente aplicada. É assim no mundo inteiro. E é esse o entendimento defendido por tratados internacionais de direitos humanos: duas instâncias, uma delas colegiada, são garantia de ampla defesa para o réu.

No entanto, além da ;interpretação; criativa do inciso LVII, nossa elite jurídica ainda emplacou toda uma narrativa favorável ao crime, como ;cumprimento antecipado da pena;, no lugar de ;adiamento do cumprimento da sentença;, e ;presunção de inocência; mesmo depois de o réu ter sido condenado em duas instâncias. É um escárnio. Um escárnio que nos custará, além da triste imagem atual de país da insegurança jurídica, a pecha de paraíso da corrupção. Imagine a fila de defensores de ;almas honestas; na porta do STF pedindo atestado de ;inocência;. É uma desmoralização. O Brasil não merece isso.

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