André Ricardo Martins*
postado em 07/11/2019 04:15
O combate ao racismo no Brasil é um processo longo, de altos e baixos, demandado persistente e exaustivamente por uns, sonegado e desprezado por outros. Uma ideologia racista ; o mito da democracia racial ; prevaleceu ao longo do século 20 e, mesmo hoje, tem seguidores. Segundo ele, a civilização portuguesa na América teria feito surgir um amálgama de povos e etnias que se respeitam entre si e convivem harmonicamente. Diferentemente do apartheid havido nos Estados Unidos e na África do Sul que segregou negros até a década de 1960 e de 1990, respectivamente, o Brasil chegou a se orgulhar de apresentar ao mundo uma sociedade pretensiosamente harmoniosa e de afirmar reiteradamente que racismo simplesmente não se registrava por aqui. Episódios de discriminação e preconceitos seriam fenômenos isolados e individualizados, sem peso ou relevância no contexto maior da propalada democracia racial.É de notar que essa ilusão tupiniquim em si foi um avanço em relação ao que se tinha nos anos que precederam e que se seguiram à abolição da escravatura. Por essa época, deplorava-se a presença majoritária de negros no país, flertava-se com a vinda de imigrantes europeus para ;melhorar; o sangue e clarear a população. Investimentos governamentais na política da imigração atendiam a dois focos de interesse: prover mão de obra num país com demanda crescente e atender o propósito da eugenia. Lembremos que naquele momento no mundo ; e o Brasil não fugia à regra ; o racismo tinha forte embasamento científico e era prevalecente nas elites e na sociedade em geral. Apelava-se a bases teóricas nos campos da biologia, antropologia, sociologia entre outros para se afirmar a existência de raças humanas e de hierarquia entre elas.
Muitas das formulações teóricas que deram base ao racismo chamado científico começavam a cair nas décadas de 1920 e 1930, quando então o nazismo atingia seu apogeu com o III Reich de Adolf Hitler. O regime do ditador alemão ergueu-se proclamando a superioridade da raça ariana e condenando as demais ao extermínio ou à subalternidade. E isso, vale ressaltar, não ficou só no discurso. O nazismo implementou política de extermínio de judeus, ciganos e desafetos do regime. Aliás, nós, brasileiros, pelo senso de oportunidade política de Getúlio Vargas e dado o anseio majoritário da sociedade civil, seríamos o único país da América Latina a engajar-se no esforço de guerra ao nazifascismo, enviando tropas militares para lutar e vencer nos campos da Itália. Por essa época, aliás, Gilberto Freire havia feito o elogio da mestiçagem e dado as bases da perspectiva da democracia racial com seu Casa grande & senzala.
O Brasil logo percebeu contradição entre lutar contra ditaduras na Europa e manter uma em solo pátrio e tratou de resolver o impasse. Vargas foi afastado. Mas o nosso racismo nunca foi visto como inimigo do desenvolvimento nacional. Ao contrário, investiu-se no dogma da democracia racial a ponto de provocar interesse na própria Organização das Nações Unidas, recém-criada. Na década de 1950, a ONU resolveu pesquisar a experiência brasileira de convivência de raças diferentes, mas essa é outra história que não vamos explorar aqui.
Chamo a atenção para o fato de que o brasileiro mediano costuma pensar o racismo como algo simplesmente subjetivo, relacionado a preconceitos, ofensas e discriminações, em sua maioria de perspectiva individual. Mas, de fato, essas manifestações são resultado de algo ainda mais basilar. Elas ocorrem porque o racismo tem uma dimensão estrutural. Ele é característica marcante, constitutiva de nosso processo civilizatório. O abandono dos escravos libertos à própria sorte, o prestígio dado aos imigrantes europeus em detrimento dos ex-escravos, a ausência de políticas de promoção da igualdade racial e de educação, saúde e desenvolvimento voltadas para índios e negros, a subalternidade de não brancos na sociedade brasileira são exemplos desse racismo estrutural.
Desde o fim da escravatura, o Brasil manteve um fosso de desigualdades entre brancos e não brancos ; níveis de renda, instrução, empregabilidade, moradia, expectativa de vida, oportunidades em geral ; que, se reduzido foi, deve-se isso aos esforços individuais e coletivos da comunidade afro-brasileira e apoiadores. As políticas sociais desde sempre, com poucas exceções, como as criadas no governo Lula, tiveram caráter universalista quando se sabe que é preciso mais que isso, ou seja, fazer recorte racial. Foi o que efetivamente os Estados Unidos fizeram a partir da década de 1960. Mas entre nós, não raro, a ação afirmativa racial ainda é zombada e combatida como privilégio.
Nos últimos anos, a sociedade brasileira ; por meio de medidas do poder público, e de iniciativas de instituições como universidades, igrejas, ONGs ; tem tido maior abertura para reconhecer o problema do racismo e combatê-lo com maior efetividade. Em meio a tudo isso, o movimento negro segue bravamente por meio da multiplicidade de suas organizações, cobrando respeito e direitos, políticas públicas, democracia efetiva. E assim, criando novas formas de enfrentar a violência e a conjuntura desfavorável, defendendo vidas, promovendo uma causa que é responsabilidade de todos, não somente de indígenas e afro-brasileiros. Mesmo porque é questão de vida ou morte.
*Jornalista, membro da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira-DF)