Opinião

Artigo: O tema da redação do Enem 2019

No Enem 2019, o tema, embora imprevisível, foi bastante acessível ao horizonte de reflexões dos alunos do ensino médio: A democratização do acesso ao cinema no Brasil

Lucília Garcez*
postado em 09/11/2019 04:06
[FOTO1]O tema da redação do Enem é sempre um mistério que estimula milhares de previsões. Professores, pais, jornalistas e os próprios estudantes se arriscam a indicar temas possíveis entre as questões da atualidade, e os candidatos sonham com a possibilidade de obter a informação correta com antecedência suficiente para estudar e treinar bastante. Mas é como ganhar na Mega-Sena. São infinitos os assuntos que podem ser propostos e é praticamente impossível adivinhar o que a banca escolhe. Para a banca também é tarefa difícil, pois deve escolher um tema que seja significativo, interessante, atual e coerente com as experiências de vida dos candidatos.


No Enem 2019, o tema, embora imprevisível, foi bastante acessível ao horizonte de reflexões dos alunos do ensino médio: A democratização do acesso ao cinema no Brasil. Faz parte do cotidiano dos jovens o interesse pelo audiovisual, aí incluído o cinema. Todos têm alguma forma de experiência, mesmo que mínima, sobre as formas culturais de entretenimento que pode fornecer elementos para a estruturação e desenvolvimento satisfatório de um texto argumentativo.

Os textos motivadores eram muito informativos, pois abordavam desde a história da criação do cinema pelos irmãos Lumi;re e por Mélies, há mais de um século, e sua transformação nessa fábrica de contar histórias para enormes plateias, até a situação do mercado exibidor brasileiro atual.

O redator, partindo da experiência pessoal, poderia considerar inicialmente que o cinema brasileiro é imprescindível para a formação dos cidadãos, pois é um dos elementos culturais que provoca a reflexão e o debate, informa, registra a história, proporciona entretenimento e contribui para a consolidação da identidade nacional. Nesse particular, poderia citar a desafiadora competição com o cinema americano, que chega ao Brasil com blockbusters que ocupam mais de 80% das insuficientes salas disponíveis, o que deixa pouco espaço para a produção nacional, constituindo uma forma moderna de colonização.

Coincidentemente, o Brasil vive hoje um embate entre os produtores culturais e o governo federal com cortes de verbas, censura a editais e paralisação de órgãos de estímulo à produção cinematográfica. Alguns candidatos poderiam tocar nesse aspecto do panorama discutindo a ideologia que embasa essas iniciativas, o que poderia politizar a argumentação. A questão é tão atual que no dia 4 de novembro se realizou no STF uma audiência pública sobre liberdade pública de expressão artística, cultural, de comunicação e direito à informação em que vários representantes do cinema brasileiro se manifestaram sobre as graves ameaças que a produção cinematográfica vem sofrendo.

Qualquer brasileiro, de qualquer classe social, sabe que ir ao cinema hoje em dia é muito caro e que há poucas salas de cinema, localizadas sempre em áreas privilegiadas economicamente, como em shopping centers para pessoas de alto poder aquisitivo. Por isso muitos espectadores preferem assistir a filmes pela TV.

Obviamente, a democratização do acesso depende de uma política de diminuição do preço dos ingressos e também de criação de novas salas exibidoras em locais periféricos e em regiões desassistidas de equipamentos culturais. Quanto mais público existir, menor pode ser o preço do ingresso, pois os custos de produção e de distribuição podem ser mais diluídos. Assim, se houver mais salas de cinema, vai haver mais espectadores, e o acesso poderá ser mais barato.

Dados apresentados na prova informam que apenas 17% da população frequenta as salas de cinema, o que representa cerca de 36 milhões numa população de 211 milhões. Mais ou menos a mesma parcela da população que declara o Imposto de Renda. Ou seja, 174 milhões estão excluídos de usufruir o cinema numa tela grande, num ritual que encanta as pessoas apreciadoras da sétima arte.

Há, portanto, larga margem de ampliação do público. Mas ela está atrelada a fatores econômicos que mantêm 13% da população na extrema pobreza. A democratização do acesso às salas de cinema depende essencialmente da significativa alteração desse quadro de distribuição da riqueza.

A banca foi bem-sucedida na escolha do tema, pois, além de atual e interessante, permitia uma grande diversidade de vertentes de desenvolvimento. Com certeza, a maioria dos candidatos pôde desempenhar bem a tarefa.

*Escritora, doutora em linguística aplicada, é professora aposentada do Instituto de Letras da UnB

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