Opinião

Artigo: Arapoanga, um pássaro livre

''Pela primeira vez, senti que os livros que escrevi se tornaram ponta de lança de um programa educacional, pois, a partir da sina de um escravo fugido e preso no interior de Alagoas, em 1825, os meninos e meninas do Arapoanga redesenharam toda a pesada carga social que legamos de nossos bisavós escravagistas''

Maurício Melo Júnior*
postado em 17/11/2019 10:28
[FOTO1]O hábito do noticiário por vezes nos leva a formalizar estereótipos. Há muitos anos, li que o Arapoanga, bairro de Planaltina, era a porta por onde o crack entra no Distrito Federal. Criou-se o estigma. E todas as vezes que via na televisão a indescritível multidão de zumbis a percorrer caminhos indefinidos, pensava no bairro e me enchia de tristezas. Planaltina, o berço de Brasília, estava maculada em sua perspectiva de sonhos e desejos.

Um dia ; isso há quatro anos ; recebo por telefone um convite. Participar de um evento literário, o Café Com Letras, numa escola do Arapoanga. Márcia, a moça que me convidava, contava, transpirando orgulho, que se tratava de um programa de incentivo à leitura idealizado pelo professor Jordenes Ferreira, onde, durante todo um ano, a obra de um escritor era lida, debatida e homenageada pelos alunos do Centro de Ensino Fundamental do Arapoanga. E naquele ano tinham escolhido meus livros para estudar.

O primeiro sentimento foi de prazer pelo reconhecimento. E logo me preparei para enfrentar mais uma plateia apática, com pouco interesse nos fundamentos das narrativas de ficção. No dia combinado, um susto. Os alunos não somente tinham lido os livros, como os interpretaram com riqueza e nuances pertinentes.

Eles verdadeiramente estudaram as obras com carinho e respeito, o sonho de qualquer escritor. Pela primeira vez, senti que os livros que escrevi se tornaram ponta de lança de um programa educacional, pois, a partir da sina de um escravo fugido e preso no interior de Alagoas, em 1825, os meninos e meninas do Arapoanga redesenharam toda a pesada carga social que legamos de nossos bisavós escravagistas.

E o Café Com Letras é bem mais que um mero encontro de escritores com leitores. O programa se forma como ponto de discussão dos caminhos da educação. O preceito básico de uma boa formação educacional, ensinam Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira, está na construção de consciências críticas, de cidadãos questionadores.

Por isso, alguns poderosos tanto temem o saber. Caso sintomático nos conta Calazans Fernandes. Ele era secretário de Educação no governo do Rio Grande do Norte no início dos anos de 1960 e implantou, no município de Angicos, um centro de alfabetização pelo método Paulo Freire, que ensina a ler e a escrever em 40 horas/aula.

Na festa comemorativa da primeira turma de formandos, diante de uma simples camponesa que escrevia mensagens para todos os governadores nordestinos e mais o então presidente da República João Goulart, ouviu o desabafo do comandante do Quarto Exército: ;Vocês estão criando cobra para morder nosso pé;. Não por acaso esse comandante chamava-se Castelo Branco e premiou Paulo Freire com o exílio.

Arapoanga caminha no reverso dessas dores. Este ano, como bom reincidente, voltei lá. Em junho, fui conversar com os professores e assisti, comovido, a apresentações de pessoas da comunidade. O talento explode pelos poros daquela gente. A menina que dançou para uma plateia encantada já não mora no Arapoanga. Está em Joinvile, Santa Catarina, pois foi convidada para estudar na escola do Balé Bolshoi. O casal que apresentou esquetes cômicos, os dois ex-alunos da escola onde se apresentaram, hoje estudam na UnB.

Agora em novembro, fui assistir às apresentações dos alunos. A partir de um texto em que conto a saga de um peixe que se rebela contra a poluição do rio, as meninas e os meninos fizeram, com programas jornalísticos filmados com um celular, uma análise ferina sobre as máculas ambientais que impomos ao nosso planeta.

De uma novela que conta de um ex-cangaceiro que tenta reconstruir a vida no Rio de Janeiro, eles passearam com propriedade e arte pela cultura nordestina. E do relato de uma cidade que se mobiliza para reconstruir um circo, eles interpretaram, com talento e saber, uma linda defesa da solidariedade e do trabalho em equipe.

Arapoanga me orgulha. Lutando por uma educação de qualidade, ela vira as costas para as mazelas sociais que tentam lhe impor. E deveria servir como rota obrigatória para o turismo cívico. Parafraseando Manuel Bandeira, e quando eu tiver mais triste, mais triste de não ter jeito, quando de noite der vontade de me matar, vou-me embora pro Arapoanga. Lá, meus amigos são reis.

*Escritor e jornalista

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