Opinião

Precedente perigoso

postado em 07/12/2019 04:05



Invocando o princípio da presunção de inocência e ante a Corte diametralmente dividida, o presidente do Supremo Tribunal Federal parece ter sepultado o esforço iniciado em Curitiba para restaurar a moralidade da coisa pública no país. Foi premiado pela circunstância, com a supervalorização da presidência, para interpretar a Constituição e proferir decisão definitiva sobre a constitucionalidade da prisão em segunda instância. Era a hora e a vez de nosso chief of justice. O lume. Que a utilizou bem, na opinião de alguns, e bem mal a juízo de outros tantos, fazendo persistir a questão na consciência da maioria dos brasileiros.

Concluiu o magistrado pela inconstitucionalidade da prisão de réus condenados em segunda instância. E desconsiderou os riscos de prescrição e a infinidade de recursos em matéria criminal. Decidiu, enfrentando teorias, teses e argumentos de magistrados, juristas e advogados, e incorporando-se a um dos flancos antagônicos do tribunal, que só o esgotamento pleno de todas as instâncias pode culminar na punição da conduta delitiva.

Restou, a partir daí, um quadro geral de perplexidade. É que, sustentada agora pelo voto do presidente, a corte recuou e modificou integralmente a decisão anterior, como se àquela tivesse conferido o caráter de provisoriedade, imprópria à natureza do julgado. Estabeleceu-se uma confusão na vida jurídica e política do país. O propalado princípio da segurança jurídica saiu do entrevero mais enfraquecido, pois este só faz sentido quando empunhado em defesa da segurança da comunidade social e política.

E, em meio a quadro de grande inconformismo, remeteu-se à classe política o papel de resolver a questão. Agora, como dizem os juristas, de lege ferenda, ou seja, via legislação. E surge novo problema. Modificar, simplesmente, a legislação processual resolve a matéria ou ela se reveste de conteúdo precipuamente constitucional? O Congresso navega por esses meandros, não sem o justo receio de que qualquer dessas providências legislativas seja, de igual sorte, renegada pela alta corte.

Considerando o presumível elevado saber jurídico de seus membros, não será gracioso indagar que princípio norteou o voto de seis eminentes ministros para situar o Suprema Corte em monumental recuo jurisprudencial, dentro de pouco tempo, sem fato concreto novo e, o que é pior, com visíveis e determinados efeitos políticos, evidenciados menos de 24 horas após a proclamação do resultado.

Hermenêutica. Seria essa a chave para perscrutar a resposta? Tudo indica que sim. E, mais precisamente, hermenêutica constitucional. A interpretação constitucional se destaca da interpretação ordinária. Ela pode e deve ser política, no bom sentido, quando se persigam altos objetivos nacionais. Por exemplo, na demarcação, conteúdo e aplicabilidade de políticas de execução criminal. É que, nesse mister, complexo, variado e excepcionalíssimo do ofício jurídico, há duas linhas fundamentais de orientação.

Para a primeira, o sistema constitucional é hermenêutico e se basta a si mesmo. É a exegese pura, ortodoxa, avalorativa, que encontra no jurista alemão Kelsen, seu maior avatar. A outra é a interpretação teleontológica, que persegue o espírito e os fins da Constituição para integrá-los à própria identidade e função no mundo jurídico . Opera para que lei maior possa atingir os seus objetivos superiores, isto é, garantir a ordem, a estabilidade e a segurança de pessoas e instituições. Trata-se de interpretação fundamental para que o Estado execute suas funções essenciais como a manutenção da República, do regime democrático e assegure a moralidade da coisa pública.

A recente decisão do Supremo Tribunal Federal parece ter optado pela primeira das premissas apontadas para, num recuo de 180 graus, considerar inconstitucional a prisão de réus, mesmo se condenados em instância colegiada, imediata ao juízo de primeiro grau. Por esse julgado, consolidou-se definitivamente como a última das instâncias criminais, navegando os réus, condenados por instância colegiada integrante do mesmo sistema jurisdicional, no mar da impunidade via prescrição.

Num país em que a delinquência ordinária se situa nas camadas sociais mais baixas e a de colarinho branco incide, em percentual menor, na elite política, empresarial e financeira, mas com comprovados e fortes efeitos danosos sobre todo o corpo social, usar o princípio da presunção de inocência como suposta salvaguarda daqueles, na verdade beneficiando muito mais a estes, representa doloroso artifício de contemporização jurisdicional.

Esse entendimento menos serve aos elevados interesses da Constituição que a grupos mancomunados em que, em rede de delinquência perversa, se cruzam interesses espúrios de toda ordem. Então, é fácil deduzir. o princípio da presunção de inocência parte, na verdade, de uma presunção falsa. Assegurando, como requisito para a prisão, sob o pálio dos direitos fundamentais, o recurso à jurisdição suprema, o Supremo Tribunal Federal afasta-se do ;espírito da Constituição; e subverte magnos e superiores princípios da Carta política.

A decisão, com todas as premissas e vênias, feriu o rosto da nação. Ensejou, no canteiro das experiências nacionais, que tantas esperanças, florescidas na vigorosa ação de Curitiba, fenecessem, uma a uma, aos pés do baldo estarrecido.




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