Sionei Ricardo Leão
postado em 07/12/2019 07:00
[FOTO1]A migração dos judeus etíopes para Israel no fim do século 20 é o único episódio em que africanos deixaram o continente para serem beneficiados com uma vida mais digna e próspera do ponto de vista social, econômico e político por motivos de solidariedade religiosa e étnica. Um relato do século 10, feito em 1868 pelo estudioso orientalista e linguista semita Joseph Halevy, professor de escolas judaicas, falava do contato que ele travara com a comunidade dos beta Israel na então Abissínia ; como o Império Etíope era chamado. De acordo com ele, houve curiosidade e inquietação desde os primeiros momentos da interação.A abordagem, conforme Halevy registrou em livro, foi inicialmente cercada de desconfianças, pois os beta Israel viram com estranheza que pudesse haver judeus brancos. Eles só se entenderam quando, em meio à tentativa de diálogo, surgiu a palavra Jerusalém. Em 1908, 44 rabinos reconheceram como autênticos os judeus etíopes. A aceitação se fortaleceu em 1973, quando o rabino sefaradim Ovadia Yossef admitiu que os beta Israel são descendentes da tribo perdida de Dan.
Um ano depois, o grão-rabino askenazim, Shlomo Goren, além de respaldar o que fizera Ovadia Yossef, defendeu o direito dos judeus etíopes de serem beneficiados com a Lei do Retorno para Israel. Os rabinos ; ao respaldarem a legitimidade dos beta Israel com o pressuposto da relação com a Tribo de Dan, pouco conhecida pelo grande público ; consagraram a presença dos negros nas Escrituras.
Todas essas decisões em relação aos beta Israel se basearam no fato de os religiosos identificarem que eles praticam a fé de acordo com os rituais judaicos, incluindo o uso da língua hebraica, professam e transmitem ensinamentos de uma Torá que, segundo se apurou posteriormente, possui mais de 500 anos, além de guardar o shabat e celebrar as datas do calendário judaico. Eles se veem como descendentes do rei Salomão e da rainha de Sabah. Esta é conhecida entre os povos etíopes como Makeda, na tradição islâmica por Belkis e chamada de Nicaula por Flávio Josefo, historiador romano de origem judaica. Essa soberana deve ter reinado no século 9 a.C.
O que se conhece sobre a rainha de Sabá está relatado na Bíblia Hebraica, no Talmude (coletânea das tradições orais judaicas), no Alcorão (livro sagrado muçulmano) e no Kebra Nagast ; texto religioso que descreve a história lendária da origem da dinastia salomônica dos reis da Etiópia, reconhecido por membros da Igreja Ortodoxa Etíope e pelo movimento Rastafari como uma escritura de inspiração divina. Segundo essas narrativas, a soberana ao ouvir da fama do rei Salomão, organizou uma caravana e viajou para Jerusalém a fim de conhecê-lo.
De acordo com o Kebra Nagast, a rainha, após permanecer por meses na companhia de Salomão, retornou para casa grávida e concebeu um filho que recebeu o nome de Menelik, o primeiro da dinastia salomônica dos reis da Etiópia.
Apesar do passado glorioso, os beta Israel no século 20 haviam se tornado uma comunidade fragilizada sócio, econômica e politicamente. Eles corriam risco de serem dizimados em decorrência da guerra civil que então se travava na Etiópia.
A partir de 1984, a comunidade iniciou um movimento de ;retorno; à terra prometida, um processo chamado de Aliyah, que é a imigração judaica para a Terra de Israel, com o acolhimento pelo Estado dos indivíduos que procuravam o pertencimento que entendiam ser de direito. Era cerca de 2,5 mil quilômetros de percurso. Era preciso atravessar o Sudão, a pé ou por transporte terrestre. Esforço exaustivo e arriscado, muitos não resistiram e morreram no caminho.
Diante dessa realidade, o governo de Israel decidiu promover uma primeira ação de apoio e acolhimento a essa população a qual denominou Operação Moisés. O esforço teve êxito parcial, ao priorizar o deslocamento por via terrestre.
Já em maio de 1991, as forças de segurança de Israel executaram uma segunda ação, agora com a utilização exclusiva e maciça de aviões para o transporte de 14.324 etíopes no curtíssimo prazo de 36 horas. A Operação Salomão foi a maior da história, sem paralelo em abrangência e rapidez.
Nas duas operações, cerca de 20 mil etíopes foram acolhidos em Israel, onde receberam o status de cidadãos plenos, além de apoio financeiro e social para se estabelecerem no país. Hoje são 135 mil cidadãos vivendo em várias regiões, integrados e atuando em várias áreas da sociedade. Há um deputado federal no Knesset ; como é chamado o Parlamento de Israel ; eleito pela comunidade judia etíope.
Uma indagação, certamente, diz respeito a se os beta Israel sofrem ou não racismo no país. Há episódios como o caso de doações de sangue de etíopes que foram secretamente rejeitadas por um laboratório, o que gerou um escândalo nacional até com passeatas. Isso levou o então premiê Shimon Perez a pedir perdão em público e abrir uma investigação oficial para apurar o caso.
De todo modo, os comentários da jornalista Dora Rosenthal, autora de Os Israelenses ; pessoas comuns em uma terra extraordinária, traduz um sentimento nacional em relação a esse segmento. Segundo ela, ;é incomum que israelenses tenham um consenso, mas quase todos concordam que o resgate dos judeus etíopes foi um dos melhores momentos do país;.
*Jornalista, membro da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira-DF) e pesquisador da cultura judaica