Jornal Correio Braziliense

Opinião

Brasil e Moçambique: escrita e diálogos femininos

As escritoras Conceição Evaristo e Paulina Chiziane oferecem um bom exemplo da necessidade de ultrapassar fronteiras e compreender novos mundos, revigorados pela literatura, beneficiando-nos das diferenças e das semelhanças esclarecedoras entre os contextos brasileiro e moçambicano. A interação entre texto e contexto, na escrita das duas autoras, revela uma multiplicidade de mensagens às quais as escritas literárias femininas são suscetíveis, como transfigurações discursivas de fatos ou processos históricos, sociais e culturais locais.

O foco recai sobre os pontos de interseção concernentes às marcas do feminino e à presença de uma crítica social às relações de poder e dominação no campo do gênero, no sentido de permitir ao leitor compreender de que forma o texto literário, como forma de representação, aborda os enfrentamentos que permeiam as relações culturais imbricadas nas sociedades em que as autoras vivem. Essa hipótese da presença de elementos comuns entre as escrituras de Conceição Evaristo e Paulina Chiziane ganha confiabilidade a partir do momento em que se acredita no diálogo histórico, cultural e literário entre Brasil e Moçambique.

As histórias das mulheres atuam em um processo de registrar as vozes femininas até há pouco tempo silenciadas. A inscrição dessas vozes na literatura funciona como espaço de reconstrução de um sujeito feminino nas lutas travadas diariamente pela sobrevivência, deixando as marcas no tempo. Nesse contexto, as experiências e ideias compartilhadas oferecem um ângulo particular de visão do eu, da comunidade e da sociedade, bem como envolve interpretações teóricas da realidade das mulheres negras por aquelas que a vivem.

Como é o caso de eventos traumáticos como a escravidão no Brasil e a guerra civil moçambicana, entendidas como estigma sob o ponto de vista de nossa história de vida, como descendentes de negros escravizados. Catástrofes como a guerra, a escravidão, o holocausto e suas ressonâncias reverberam por várias gerações. Dessa forma, à medida que as autoras em estudo revivem o trauma em seus textos literários, recuperam na arte a experiência por meio da memória, de forma que tais eventos não sejam esquecidos.

Evaristo e Chiziane, na particularidade do estudo sobre as obras Ponciá Vicêncio e Ventos do Apocalipse, respectivamente, apresentam os sujeitos femininos inseridos em um processo de temporalidades múltiplas como a guerra e a escravidão. A escrita desses sujeitos femininos no próprio contexto histórico torna-se importante porque demonstra outra forma de pensar a resistência, além de revelar o invisível e o que estava silenciado; logo, rememorar histórias de vida contribui para a reconstrução de uma imagem individual e grupal, instituindo novas possibilidades de verdade sobre o sujeito feminino.

Nesses textos, observamos uma experiência emergente no discurso narrativo, que vai além de escrever sobre e para as mulheres: o foco recai sobre um ponto de vista feminino que interroga a realidade, bem como traz em si uma pluralidade de períodos históricos, a fim de resgatar experiências passadas e de vislumbrar relacionamentos sociais transformados e futuros alternativos a partir do desocultamento das desigualdades.

Rememorar histórias de vida de mulheres negras é o mote da obra evaristiana, que recorre ao passado para recriar as próprias histórias: trajetórias das mulheres negras, das famílias, dos ancestrais, das memórias alegres e tristes que eternizam experiências antigas, até então pouco contadas dos afro-brasileiros. Feminismo, resistência negra e memória compõem a trama de Ponciá Vicêncio, que materializa o resgate de elementos de uma experiência afro-brasileira de forma a projetar um futuro a partir da releitura da história dos descendentes dos povos escravizados no Brasil.

A escritora é hoje a principal voz feminina da literatura afro-brasileira. Ao posicionar-se como negra e ao fazer literatura com características afro-brasileiras, sinaliza a necessidade de revisão crítica da história oficial que minimiza o passado de séculos de escravidão e de exclusão social que se perpetua para a maioria da população brasileira.

Já Paulina Chiziane, a primeira moçambicana a publicar um romance, traz para a narrativa experiências vivenciadas por ela na Cruz Vermelha. Fome, seca, guerra, ambição pelo poder são ingredientes da sua obra. Chiziane, assim como as personagens, foi e é testemunha das iniquidades de uma sociedade que do colonialismo passou por uma guerra civil de 16 anos, o que nos permite afirmar que as ações desenvolvidas por elas representam os sofrimentos, os desejos e as angústias das mulheres moçambicanas, mas também as crenças e esperanças de dias melhores.