Correio Braziliense
postado em 02/01/2020 04:04
Monteiro Lobato conta que uma senhora esperava ganhar na loteria. Religiosa, ia à missa todos os dias e, terminada a celebração, passava horas ajoelhada na igreja. Rezava horas sem fim. Mas, sai ano, entra ano, a sorte não lhe batia na porta. Um dia, ela reclamou que Deus não lhe ouvia as preces. O padre, levado por intuição repentina, perguntou se ela havia apostado. A resposta: “Nunca joguei. É pecado”.
Governantes brasileiros seguem a receita da personagem do criador de Emília, Pedrinho, Narizinho. Sabem que as chuvas de verão são tão certas quanto o suceder dos dias e das noites, das fases da Lua, das estações do ano ou da troca de calendário a cada 365 dias. Mas, apesar de indubitáveis, os temporais parecem surpreendê-los sempre que caem e provocam estragos.
Este ano a tragédia se antecipou. Começou na primavera. O aguaceiro que despencou no Espírito Santo deixou quatro mortos e 600 desalojados ou desabrigados — todos vítimas de alagamentos e queda de barreiras. Dias depois, foi a vez de Campos do Jordão. Tempestades roubaram a vida de quatro pessoas.
Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina, Espírito Santo, Minas Gerais e outras unidades da Federação são suscetíveis a deslizamentos. Chuvas torrenciais, cada vez mais frequentes, provocam o caos. Alagam ruas, interditam o trânsito, derrubam árvores, engolem carros, destroem casas, matam gente.
Apesar da certeza, pouco ou nada se faz para prevenir em vez de remediar. Sobressaem problemas de infraestrutura e falta de planejamento. As autoridades gastam menos do que deveriam no combate às enchentes. Investem menos do que o necessário em planejamento, que é a grande questão da drenagem. Também investem pouco em intervenção, obras de limpeza, campanhas educativas para que a população colabore na limpeza urbana.
Bueiros entupidos deixam de desempenhar o papel para o qual foram criados. Árvores, há muito condenadas, despencam em cima de veículos e casas. Rios exibem o cemitério de lixo e entulho em que se transformaram. Mais: moradias construídas em área de risco aguardam o momento em que serão arrastadas junto com os moradores.
Os locais condenados são conhecidos há décadas, mas nem por isso merecem atenção especial. Ao contrário. Por incompetência, populismo ou inércia, os governantes fecham os olhos para as urgências de remover os moradores para regiões mais seguras e de evitar que novas famílias ali se instalem levadas pela pobreza e pelo desamparo.
O Brasil se urbanizou sem planejamento. Populações expulsas do campo se assentaram nas periferias. As cidades incharam. Apesar do novo cenário, faltou política habitacional capaz de responder à realidade que só se agrava. Pergunta-se: governadores que assumiram há um ano têm projetos para resolver o problema? Prefeitos que se elegerão em 2020 têm propostas para evitar tragédias nos municípios que administrarão? Teme-se que repitam o enredo da personagem de Lobato.
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