Opinião

Artigo: Coringa - o palhaço que não é piada

Correio Braziliense
postado em 07/01/2020 04:35
Neste domingo, 5 de janeiro, o filme Coringa concorreu em quatro categorias do Globo de Ouro, uma das premiações mais importantes do mundo. Pra lá de merecido. Fiquei tão impressionada com essa obra-prima do cinema que decidi escrever sobre o filme — como psicóloga, como política e na condição de cidadã que vive as angústias do presente.

Meu primeiro ponto: o filme traz o desconforto da realidade, incomoda porque é verdadeiro, transparente e, sobretudo, por exibir o permanente menosprezo dos órgãos públicos com as doenças psicológicas. “A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você aja como se não tivesse uma”, escreve Coringa no caderno de piadas para o show de stand-up comedy que está preparando.

Gotham é a cidade da violência e da brutalidade, da solidão, do bullying e da omissão do Estado. Aqui, por mais perturbadora que possa ser a questão, cabe indagar: o descaso contribui para transformar seres humanos em criminosos?

Como cuidar da ansiedade e da depressão, muitas vezes causadas pela descrença, pelo desalento e pela frustração? Como evitar que se alastre a epidemia oculta de infelicidade que atinge milhões de pessoas?

Para resolver um problema, é necessário reconhecer que ele existe. Não foi por acaso que a Inglaterra criou, em janeiro de 2018, o Ministério da Solidão. Os ingleses são pragmáticos, sabem que a infelicidade tem impacto negativo até na produtividade das pessoas.

A filósofa Hannah Arendt escreveu sobre a banalidade do mal. Segundo ela, chega um momento em que “tudo se estilhaça frente à realidade”. E a realidade se impõe”. O Brasil é o primeiro no ranking internacional de países com o maior número de pessoas com ansiedade — são 18,6 milhões de brasileiros.

Nosso país é também o quarto com maior número de pessoas com depressão. E a situação piora com a combinação desses dados com os números do Altas da Violência 2018, que mostra o Brasil com taxa de homicídio 30 vezes maior que a da Europa.

O sofrimento aumenta na crise. Aqui, a taxa de desemprego segue na faixa de 12%, ou seja, quase 13 milhões de pessoas penam com a pobreza e se frustram com a falta de expectativa. Questões difíceis e complexas como essas nos fazem refletir sobre a urgência de buscar consenso para fazer mudanças no tratamento de transtornos mentais, enquanto é tempo.

Coringa é um filme fortíssimo porque mostra que a dor das pessoas não pode ser vista como piada. E a arte imita a vida mais do que o contrário. Tanto que estamos assistindo a milhares de coringas irem às ruas do mundo todo bradar contra injustiças e a distribuição desigual de poder e de renda.

“O progresso moderno... nem sempre contribui para reduzir a pobreza, mas para ampliar o abismo de desigualdades entre países, classes e pessoas”, diz Vargas Llosa em Civilização do espetáculo.

Vale imensamente a pena ver Coringa. Joaquin Phoenix interpreta o personagem de forma tão intensa que dá vontade de abraçá-lo para agradecer por cumprir com tanta excelência o ofício de ser ator. Ele nos faz sentir a dor que representa a dor de milhares de pessoas.

O filme mexeu muito comigo. Até hoje não consegui esquecer a frase que Coringa, depois de abraçar seu lado violento, anotou: “Só espero que minha morte faça mais sentido do que minha vida”. Em um mundo com tanto conforto e tanto conhecimento disponível, uma pessoa se sentir tão mal assim não tem graça nenhuma.
 
*Psicóloga e senadora da República

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