Opinião

Artigo: A MP 905 e os desempregados

Correio Braziliense
postado em 08/01/2020 11:24
Disse Rui Barbosa que o Brasil nunca foi verdadeiramente república e nunca haverá de ser. Atribuiu a responsabilidade ao povo, cujas raízes históricas, a proverbial falta de determinação e o desinteresse pela coisa pública o impedem de discernir e agir com independência, inteligência e equilíbrio na escolha dos representantes políticos.

Basta o fato de nos encontrarmos na oitava Constituição, revista e remendada mais de 100 vezes em 25 anos (a Emenda nº 1 de Revisão data de 2/3/1994), para nos convencermos de que nunca demos o necessário valor à Lei Fundamental, repetidamente torturada e submetida aos abalos sísmicos que sacodem Brasília.

A Constituição democrática de 1946 recusava ao presidente da República competência para baixar decretos-leis, fartamente utilizados por Getúlio Vargas no Estado Novo (1937-1945) e ao longo do regime militar (1964-1985). Ignorava, também, a medida provisória. Ambas as ausências não foram obstáculo à governabilidade e ao desenvolvimento, sobretudo durante o governo do presidente Juscelino Kubitschek (1955-1959).

A Constituição vigente introduziu a medida provisória (MP) no processo legislativo (art. 59, V). É parente próxima do decreto-lei. Foi colocada ao alcance do presidente da República para uso “em caso de relevância e urgência”. Não basta que o tema seja relevante. É obrigatório revestir-se de urgência. Urgência deriva de urgir, ser imediatamente necessário. Exige resposta imediata e não se coaduna com dilatação de prazos. Para aprová-la a Câmara dos Deputados e o Senado dispõem de 60 dias, prorrogáveis por igual período.

A edição original da Constituição tratava da medida provisória nos artigos 59 e 62. A Emenda nº 32 alterou ambos os dispositivos. Além de modificar a parte inicial do art. 62, acrescentou-lhe 4 incisos, 4 letras e 12 parágrafos. Teve o propósito de refrear o ímpeto legiferante de sucessivos presidentes da República. A MP é filhote do autoritarismo. O uso abusivo mostrou-se avesso aos princípios do Estado Democrático de Direito. Muitas impuseram sucessivas reedições. A Emenda 32, de 19/12/2001, foi o instrumento utilizado pelo Congresso Nacional para lhe refrear a utilização, objetivo nunca alcançado.

Uma das mais recentes tem o nº 905 (11/11/2019). Institui o Contrato de Trabalho Verde e Amarelo, altera a legislação trabalhista e dá outras providências. Trata-se de conjunto prolixo e complexo de dispositivos sobre temas polêmicos e variados. Para convertê-la em lei, dentro do prazo fatal, a Câmara dos Deputados e o Senado deverão trabalhar em alta velocidade. Considere-se, nesse aspecto, o recesso do Congresso, a lenta retomada dos trabalhos em fevereiro, o elevado número de emendas apresentadas.

O governo eleva o velho fenômeno do desemprego à condição de algo relevante que cobra providências urgentes. Para enfrentá-lo, porém, não bastará a vontade do ministro Paulo Guedes. Será indispensável que a economia cresça com firmeza e rapidez depois de uma década de estagnação. Conseguirá a MP 905 operar o milagre da multiplicação de oportunidades de trabalho para garantir emprego decente e salários a 12,6 milhões de desocupados, dos quais 5,7 milhões são jovens entre 19 e 29 anos, como destaca a Exposição de Motivos 352/2019?

Parcela majoritária dos sem-trabalho foi atingida pela tecnologia da informatização, pela automação, robotização, globalização. Sobre ela pesa persistente desindustrialização, mas não apenas ela. Milhões de desempregados não reúnem condições para encontrar colocação em atividades modernas, por carência de qualificação profissional. São brancos, pardos e negros, com escolaridade precária, para quem o mercado de trabalho tornou-se um Everest inacessível.

Além do desemprego, temos o desafio do mercado informal, dominado por micro e pequenos empreendedores, titulares de pequenos negócios cujos resultados financeiros não lhes permitem arcar com ônus da formalização. A informalidade não se encontra nas grandes empresas ou pequenas e médias bem organizadas e rentáveis. Está presente entre os que não conseguem registrar, pelo custo insuportável da formalização.

O desemprego é o quinto cavaleiro do Apocalipse. Para reduzi-lo a curto prazo a 3% ou 4%, serão necessários grandes investimentos. Apesar das boas intenções, não bastará a MP 905.

*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho. É autor de 30 Anos de Crise - 1988-2018

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