Opinião

Artigo: Nossa espécie, nossa trajetória, nossas línguas

Correio Braziliense
postado em 09/01/2020 04:16
A Organização das Nações Unidas (ONU) declarou 2019 o ano internacional das línguas indígenas. Convido a todos a refletir sobre essa homenagem, que é antes um alerta. De acordo com o levantamento feito em 2011 pelo Ethnologue — línguas do mundo, existem atualmente quase 7 mil línguas, 95% delas faladas por grupos com menos de 1 milhão de pessoas. A maioria pertence às minorias, cujas vozes não são ouvidas pelos representantes das sociedades dominantes.

A condição de silenciamento dará cabo de muitas pessoas e muitas línguas. Linguistas e antropólogos alertam que metade delas desaparecerão até 2100.  Perdemos, em média, nove línguas por ano, uma a cada 40 dias. Essa taxa deve subir nos próximos anos.

Mapeamento feito pela ONU mostra que o continente com maior preservação linguística é a África, onde 87% das línguas estão em condição pouco preocupante e apenas 2% em perigo de extinção. Na Austrália, a situação é bastante grave: 32% das línguas nativas estão extintas, 40% em curso de extinção e apenas 6% estão preservadas.

Nas Américas, das línguas indígenas existentes antes da colonização, 17% já se foram, 16% encontram-se em situação crítica e 38% estão fora de perigo. Ainda, de acordo com o Ethnologue, 437 línguas estão prestes a desaparecer e 37 delas estão no Brasil.  Um exemplo é o Xetá, língua tupi-guarani, falada no Paraná.  De acordo com levantamento feito em 2013 pelo linguista Aryon Rodrigues, existem apenas 60 xetas e só um deles fala a língua.

É urgente a criação de políticas de proteção aos povos indígenas, suas culturas e suas línguas. Mas não é fácil fazer nossos governantes compreenderem a importância das minorias. Falta a todos, incluindo a grandes parcelas da sociedade, entendimento da questão. As pessoas, às vezes, opinam, de maneira meio fatalista, que as coisas estão mudando e muito do que está aí vai desaparecer mesmo. Não parecem apreciar o termo diversidade. A teia biológica que sustenta a vida na terra é tecida com base em oposições.  A existência do outro é o que garante a nossa existência e vice-versa.

Para entendermos  o papel da diversidade, observemos o que ocorre quando não há diversidade, havendo isolamento de um grupo.  Tomemos como exemplo os amishes, comunidade religiosa criada na Europa no século 16, durante a reforma protestante. Por motivos de perseguição, alguns migraram para os Estados Unidos, fundando comunidades isoladas, com fortes restrições a pessoas de fora, aos não amishes.

As restrições levaram à endogamia e à consequente redução da variabilidade genética dentro da comunidade, promovendo a proliferação de genes malfeitores. Entre os amishes de Lancaster, por exemplo, há uma taxa muito elevada da síndrome de Ellis-Van Creveld, desordem genética rara que causa displasia esquelética. Estudos médicos indicam que os portadores da síndrome são herdeiros genéticos de um único casal de ingleses, que chegou à Pensilvânia em 1744, carregando o gene responsável pelo mal. Ou seja, a rejeição à diversidade promoveu a manutenção e multiplicação  de uma carga genética não desejada.

Não há relação biológica entre linguagem e genética. Pessoas com genótipos diferentes podem falar a mesma língua, e pessoas da mesma linhagem genética podem falar línguas diferentes. No entanto, a diversidade linguística é  marcador de diversidade genética. As línguas surgem do contato entre diferentes grupos de humanos. Portanto, maior número de línguas sugere maior ocorrência de trocas genéticas entre grupos. Ou seja, funciona como termômetro da saúde biológica da nossa espécie.

A correlação entre língua e genética é vista também na história dos seres humanos. Pesquisas em biologia evolutiva e tipologia linguística indicam que o êxodo do homo sapiens moderno do continente africano durante o período paleolítico deixou marcas genéticas e linguísticas que podem ser medidas nos dias atuais. A África é o continente com maior diversidade linguística (número de fonemas por línguas) e maior variabilidade genética (número de indivíduos heterozigotos) do planeta.

Esses números são significativamente menores na América do Sul e na Oceania, os últimos territórios povoados pelos humanos. A redução se deve ao efeito fundador: quando um grupo de seres vivos se desgarra do grupo de origem, fundando novo grupo, observa-se, no novo grupo, diminuição da variabilidade genética e linguística.  Portanto, há naturalmente redução da diversidade na Oceania e nas Américas. No período pós-colonização, a redução tem-se ampliado em consequência de políticas de exclusão.

Quando uma língua e seus falantes morrem, os dados de que precisamos para entender nosso passado deixam de existir. Míngua também a diversidade genética que precisamos para garantir nosso futuro.

*Professora, PhD em linguística, PUC-Rio

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