Opinião

Artigo: Como me tornei preto

Correio Braziliense
postado em 11/01/2020 04:05
“Você preteou!” Foi assim, objetiva e sorridente, que a tia-avó me cumprimentou. Fazia uns 20 anos que não nos víamos. Na hora, intimamente, duvidei que ela estivesse mesmo se lembrando de mim. Não estaria me confundindo com um dos incontados netos, bisnetos, sobrinhos-netos, sobrinhos-bisnetos e sabe-se lá quantos ramos mais da família espalhada e imensa? Mas ela sabia, sim, quem estava ali na sua frente: um eu mais preto do que ela se recordava. As pernas da velha senhora estão cansadas, mas a memória segue atenta perto dos 100 anos.

“Você preteou”, ela disse, e não tive como não rir. Rimos divertidos, os que fomos vê-la naquele semiárido que é o norte de Minas Gerais. Terra de gente mestiça: pardos do cabelo liso, brancos do cabelo crespo, poucos brancos-brancos, raros pretos-pretos, quase todos quase-pretos, quase-brancos, como na letra Haiti, de Caetano Veloso. Não nasci lá; estão lá minhas raízes, então, de certo modo, sou de lá.

Na volta para Brasília, depois da festa pelos 80 anos do pai, motivo da viagem, enquanto o ônibus cortava o sertão, as palavras da tia-avó me percorriam. Estou mais preto do que era? Minha pele escureceu? Como?  Ser preto, negro, foi para mim um itinerário mais longo que as centenas de quilômetros entre bananais, pastagens e monótonas plantações de eucalipto. Foi nos começos da vida adulta que percebi: o tom da minha pele chega antes de mim.

À medida que os estudos foram avançando e os empregos melhorando, os peles-escuras, os cabelos-duros foram sumindo de vista. Quantos de nós havia na faculdade particular, na redação da maior emissora de TV do país? Quantos há no emprego público de nível superior?

Dizem que o outro é espelho. Eu me espelhava nos brancos e nos quase-brancos com quem convivia e com quem partilhava o tempo, os estudos, o trabalho, os afetos: amigos, pessoas queridas e pessoas não queridas, não amigas. Aos poucos, entendi que não eram meu reflexo, assim como eu não era o reflexo deles. Eles não se viam em mim. Eles não se veem em mim.

O que me alertou foi a palavra, a escuta. Coisas que ouvia em tom de brincadeira foram gotejando, marejando lá no fundo, onde o riso aperta e dói: “Tinha que ser preto mesmo! Se não caga na entrada... Uai! Abriram a porta da senzala? Reprodutor, zulu, zumbi, coisa preta, pretume, negrume, betume, breu, piche, chulapa, carvão. “Tá escuro; mostra os dentes pra eu te enxergar”. “Mas você nem parece preto”. “Nem é tão preto assim”. “Com essa cor, é claro que corre bem”. “A sua cor te favorece, cor do pecado”, azul, azulão, anu, tiziu, urubu, macaco, gorila, chimpanzé, orangotango, cabelo ruim. “Isso aí na sua cabeça cresce no meu saco”. Carapinha, carrapicho, pixaim, pixuá. “Quando não tá preso, tá armado”. “Parado é suspeito, correndo é ladrão”. “Com essa touca, tá que nem bandido”. Malandro, meliante, marginal. Serviço de preto. “Pega o meu carro! Não é manobrista?” “Foi convidado pra festa?” “Carrão, hein! É roubado ou tá esperando o patrão?” “Jornalista? Tem como provar?” “Ai, que medo!” “É entrega pra que apartamento? Ah, o senhor mora aqui?”

Percebi que palavras assim sempre me acompanharam. A fantasia entrelaçada à memória faz crer que a adolescência foi romântica e a infância, idílica. Se tivessem sido, não haveria histórias como a que o vizinho nos contou ainda meninos. 

“Enquanto Deus fazia o mundo, aquele que viria a ser o diabo atrapalhava; seguia atrás bagunçando o que o Criador tinha acabado de fazer: soprava a terra ainda mole dos campos até que virasse deserto, botava garras nos bichos, veneno nas cobras, espetava as rosas, ferroava abelhas. Cansado da semana de tanto trabalho e irritado de tanto estorvo, o Senhor pensou e só de pensar realizou: o Tinhoso escureceu que ficou preto tinto e retinto, que gente assim não existia na Criação. A Criatura implorou perdão, derramou lágrimas fingidas e sinceras. O Pai-de-Todos se compadeceu e mandou que o Coisa fosse até certo rio e se banhasse, que sua pele de novo seria alva como a manhã do primeiro dia. Atrevido que só, lá foi o Dito-Cujo correndo e pulando e cantando: ‘Deus é bobo mesmo! Enganei ele direitinho.’ O Todo-Poderoso ouviu mais aquela insolência e soprou a água antes que o Sete-Peles alcançasse o rio. O Tal chegou lá e só tinha um tiquinho de barro; só deu pra pisar e molhar as mãos. E é por isso que até hoje a sola do pé e a palma da mão dos negros são mais claras que o resto do corpo.”

Isso é conto que se conta? São palavras de desprezo e de ódio — sim, há ódio subjacente ao humor depreciativo —, palavras com as quais eu tive que me haver. Ainda doem. Como não? “Poxa” — me disseram —, “mas é só brincadeira. Você se magoa muito fácil.”

Não é mágoa. É consciência. O que escutei a vida inteira como piada, um dia, transbordou. As palavras ouvidas lavaram o espelho distorcido, até que eu reconhecesse a cara preta refletida, a face que é minha e que eu não queria ver. Quem deseja ser o que o mundo diz que é feio?

Em palavras, atos e silêncios, parte do mundo ainda afirma que o que eu sou é feio. Determina que os pretos e os quase-pretos permaneçam como que escondidos, varrendo o chão, limpando banheiros, pelos cantos, em silêncio ou falando baixo. Em palavras, atos e nunca mais silêncio, eu retruco meu sonoro NÃO! Pra chegar a ele, percorri meus sertões e mudei, sim, de cor. Foi de dentro pra fora, mas tão evidente que a tia percebeu de cara.

— Você preteou.

— Sim, tia, eu preteei.

*Mineiro de Belo Horizonte, jornalista, poeta; prepara o livro de poemas Insonho, a ser lançado este ano

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