Opinião

Artigo: Mariana Mazzucato e a reinvenção da economia

Correio Braziliense
postado em 12/01/2020 04:05
Entre as áreas do conhecimento humano mais lembradas e discutidas, está a economia, ciência social que trata de temas como produção, consumo, geração e transferência de riquezas. É a partir do corpo de conhecimentos da economia que se analisam e se gerenciam as mais importantes organizações humanas, como as entidades públicas e as empresas privadas, além de áreas como finanças, mercado de trabalho, relações entre nações, exportações, agricultura, entre muitas outras. A economia é tão presente em nossas vidas porque, direta ou indiretamente, impacta temas marcantes no nosso dia a dia, como empregos, salários, investimentos, alimentação e muito mais.

Por lidar com questões tão complexas e suscetíveis à dinâmica de uma sociedade em constante mudança, a economia tem sido objeto frequente de questionamento e crítica. São, por exemplo, comuns análises contraditórias sobre razões do sucesso ou insucesso econômico de empreendimentos ou de nações. E é cada vez mais evidente a baixa capacidade de antevisão da ciência econômica, que raramente consegue prever transições de períodos de bonança para recessões e vice-versa, tema que provocou inusitada reação da sempre comedida rainha Elizabeth II, que, ao visitar a Escola de Economia de Londres, após quebra do mercado que deu início à Grande Recessão de 2008, questionou: “Por que ninguém percebeu isso?”

E vemos emergir um forte sentimento de que é preciso reinventar a ciência econômica para o nosso tempo, que é marcado por um grau de complexidade que não pode mais ser manejado a partir do corpo de conhecimentos da economia tradicional. Uma voz proeminente nesse processo é a da economista ítalo-americana Mariana Mazzucato – professora da University College de Londres, que, de forma perspicaz e veemente, e em linguagem acessível a não economistas, explicita a necessidade de se reinventar a economia tradicional e de se reformar o capitalismo – um sistema que ela considera cada vez mais combalido.

Em seu livro The Value of Everything (O Valor de Tudo), publicado em 2018, ela pede mais atenção aos processos de geração de riqueza, argumentando que a diferença entre criação de valor e extração de valor está cada vez mais envolta em névoas. E essa falta de clareza permite que determinados atores da economia se passem por criadores de valor, quando na verdade estão apenas manipulando o valor produzido por outros ou, muito pior, destruindo-o. Por isso ela defende a necessidade de se explicitar quem realmente cria riqueza, quem se limita apenas a extraí-la, e quem a destrói. Explicitar esse conhecimento poderá ajudar a evitar o domínio de sistemas parasitários, abrindo caminho para um tipo de capitalismo mais simbiótico e sustentável, que beneficie a sociedade de forma mais ampla.

No cerne do pensamento de Mariana Mazzucato, está a relação entre os setores público e privado e a noção de que governos também desempenham um papel fundamental na inovação e na produção de riquezas. Em obra publicada em 2013, intitulada The Entrepreneurial State (O Estado Empreendedor), ela confronta o mito de que o Estado é um paquiderme burocrático, ineficiente e sem mobilidade, que deveria se concentrar apenas em corrigir as falhas de mercado, deixando a inovação e a criação de riqueza para o setor privado. Ela demonstra com dados concretos que inovações que estão mudando o mundo, como a Internet, os smartphones, as energias renováveis, entre muitas outras, são nascidas de financiamentos estatais.

Foi exatamente a relação virtuosa entre Estado e setor privado que permitiu ao Brasil alcançar a segurança alimentar e se tornar grande exportador de alimentos em apenas quatro décadas. Não fosse o investimento público em pesquisa agropecuária de alto risco, pouco atrativa ao investimento privado, o Brasil dificilmente disporia hoje da agricultura tropical mais avançada do mundo. Experiência que infelizmente não se registra em muitos outros setores industriais brasileiros, que pouco se integraram às cadeias de valor globais. Embora tenhamos o 9º maior parque industrial do mundo, ocupamos em 2018 apenas a 32ª colocação no ranking de exportações de manufaturados. Aqui, também, um estado empreendedor poderia ter feito muito pela produtividade e competitividade do Brasil.

Planejamento a longo prazo e capacidade de lidar com a extrema incerteza subjacente aos processos de inovação e à crescente complexidade que marcam o nosso tempo demandam envolvimento, atenção e financiamento do Estado. Mas o que se vê ao redor do globo é ênfase nos cortes de orçamentos públicos e inação frente ao desempenho defeituoso do capitalismo moderno, com muitos setores se tornando altamente concentrados nas mãos de poucos atores, resultando em menos investimento, menor produtividade, menor dinamismo, menores salários e maior concentração de riqueza, o que tem gerado enorme insatisfação mundo afora.

Situação que justifica a veemência de Mariana Mazzucato, que não se cansa de defender que se traga de volta a noção de valor público para a economia, e que se reconheça que um estado empreendedor pode estimular novos investimentos e produzir mais diversidade e equilíbrio no ambiente privado. Enfim, que se reavalie o papel dos atores públicos e privados na geração de crescimento, que se busque entender o que impulsiona o investimento e até que ponto a direção do crescimento pode ser moldada para beneficiar a sociedade. Que, em suma, se ouse repensar o capitalismo.


*Pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa)

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