Correio Braziliense
postado em 18/01/2020 04:13
Em 1976, eu tinha seis anos quando a televisão entretinha o público brasileiro com a novela Escrava Isaura. O romance homônimo foi escrito em 1875, por Bernardo Joaquim da Silva Guimarães, em pleno movimento abolicionista. Isaura era uma escrava branca que tinha aprendido a tocar piano, ler francês, ter “bons modos”. Mas, nada disso mudava sua condição de escrava. Alguns personagens afirmavam que os mestiços eram pessoas que deveriam ser escravizadas, pois filhos de escravos, escravos eram. À época da escrita do romance, o racismo considerava a mistura de raças uma questão a ser combatida em prol da manutenção da pureza branca.
A novela tentou não ser preconceituosa no roteiro do núcleo abolicionista, mas esse repetia frases como: Isaura é tão bela que é “um pecado que uma moça como ela, tão bela e tão prendada, seja mantida na condição de escrava”. Que contrassenso! Uma escrava ser branca, era o que se dizia. Como se a condição de escravo se justificasse pela cor da pele.
Frases como essas deixam passar a dificuldade das pessoas de serem libertas dos princípios preconceituosos nos quais foram educadas. A novela foi regravada em 2004, mas a estória, permeada de boas intenções no combate à escravidão, ainda emitia, na sutileza do romance, o preconceito da sociedade, mesmo em pleno século 21.
Esse cenário abre nossa argumentação sobre a necessidade de construirmos um conhecimento antirracista que nos conduza, igualmente, à construção de políticas antirracistas. Tais modelos de políticas garantiriam a concretização efetiva do princípio do Estado democrático de direito prescrito na Constituição Federal de 1988. Um Estado elaborador de normas constitucionais e políticas públicas fundamentadas em princípios de justiça para garantir o acesso a direitos por todos e todas, sem discriminação. Um Estado que refine seus mecanismos de controle social e restitua à esfera política a participação efetiva e representativa de grupos historicamente marginalizados.
Para tal, é preciso compreendermos, inicialmente, que o Estado e a sociedade ainda não estão livres do preconceito racial concebido no sistema capitalista colonizador. Um sistema calcado no poder de dominar o outro a partir da classificação da raça, etnia ou gênero. O contexto histórico construído na política da hierarquização de grupos de pessoas —, que dota alguns de privilégios e poder enquanto diferencia e relega outros povos à subalternidade e à ausência de cidadania e dignidade da pessoa humana — ainda é fato concreto na sociedade brasileira e mundial. Esse comportamento reproduz um sistema de discriminação e preconceito baseado em critérios de raça, dando origem a comportamentos racistas, mesmo que alguns digam que não.
Negar o racismo existente em nossa sociedade é um ato racista. Continuamente, a política brasileira alija a população negra e indígena da condição de cidadania e finge não perceber que as estratégias políticas escolhidas pelos representantes do povo resistem incólumes ao racismo, reproduzindo-o. Dessa forma, as políticas públicas que não estão atentas ao preconceito e discriminação por raça tendem a ser racistas em sua origem, sejam elas políticas de planejamento urbano, de segurança, de tecnologia, educacionais, de saúde, de transporte, sejam de cultura e lazer, entre outras.
Em um Estado monoétnico, a gramática política produzida conduz ao racismo estrutural. Vejam em nossas universidades quantos professores são negros ou indígenas, quem são nossos autores de referência? De que segmento social são oriundos? Estamos reproduzindo padrões colonizadores e racistas? Em uma sociedade em que pelo menos 56% das pessoas se autodeclaram negras como é que o mercado de trabalho, as universidades e o Congresso Nacional ainda são eminentemente brancos? Qual justificativa não racista pode ser formulada para explicar essa realidade?
Chegamos ao momento de buscarmos — verdadeiramente — políticas públicas que visem à redução das desigualdades. É preciso reconhecer que nossa constituição social é moldada pelo preconceito, pela discriminação e pelo racismo. É preciso propiciar oportunidades para a construção de políticas antirracistas por pessoas que se mostrem abertas à mudança de paradigmas, privilegiando a diversidade em detrimento dos modelos hegemônicos da cultura branca, capitalista, colonizadora e excludente. Vale destacar que nem toda pessoa branca é racista. Seria injusto desconhecer que muitas delas são parceiras nessa luta.
Não estamos no momento de prescindir das políticas de ação afirmativa, mas ao mesmo tempo, temos a necessidade premente da construção de políticas antirracistas que permitam o convívio socialmente justo entre pessoas em todos os espaços, no cotidiano das relações humanas, com ações propositivas verdadeiramente democráticas pautadas por argumentos humanistas. Que se abra espaço para uma nova era na construção de políticas antirracistas no Brasil!
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