Opinião

Fé, ódio e incoerência

Correio Braziliense
postado em 20/01/2020 04:14
Aprendi, com o passar dos anos, que a maioria dos segmentos que têm uma data que os colocam em evidência para a sociedade é discriminada. Não temos um dia no ano específico para comemorar o homem branco. Em compensação temos o dia da mulher, da criança, do idoso, das pessoas com deficiência e até data para alertar às pessoas sobre como lidar com a natureza, indispensável à vida: dia da água, do meio ambiente e por aí vai. O Dia Nacional da Consciência Negra, 20 de novembro, homenageia Zumbi do Palmares, ícone da resistência dos negros contra a escravidão. Ele foi decapitado nesse dia, em 1695, pelas tropas coloniais.

O racismo foi uma construção dos colonizadores eurocentristas para  justificar a depreciação e a inferiorização dos negros e de outras etnias, usados como força motriz para seus interesses econômicos. No Brasil, a deformidade persiste há mais 500 anos. Por iniciativa dos quilombolas gaúchos, novembro se tornou o mês da Consciência Negra. A cada ano, os eventos de novembro têm levado a sociedade a aprofundar o debate sobre segregação racial não só dos negros, mas também de indígenas, ciganos e outros segmentos da população invisíveis ou alijados das políticas públicas.

Amanhã, 21 de janeiro, é o Dia Mundial da Religião. No Brasil, é o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Coincidência? Talvez. Mas foi nesse dia, em 1999, que a ialorixá Gildásia dos Santos, 65 anos, conhecida como Mãe Gilda, do terreiro Ilê Axé Abassá de Ogum, em Salvador, teve um infarto fulminante, após ver sua foto na capa de um jornal neopentecostal, ilustrando a manchete: Macumbeiros charlatões lesam a bolsa e a vida dos clientes. A Justiça acolheu a denúncia da família da ialorixá, e condenou a igreja a indenizar os decendentes de Mãe Gilda.

Em 2007,  o 21 de de janeiro foi oficializado pela Lei nº 11.635, de 27 de dezembro. Mãe Gilda, inspiradora do marco legal, tornou-se um símbolo da luta contra a intolerância religiosa no país. No Rio de Janeiro, traficantes e marginais convertidos pelos fundamentalistas têm agredido e destruído os espaços destinados à Umbanda e ao Candomblé.

Os negros, embora tenham contribuído — e seguem contribuindo — para o desenvolvimento socioeconômico do país, ainda são perseguidos nas diferentes formas de diálogo com o sagrado, como ensinadas pela ancestralidade africana. Fora dos padrões cristãos, são satanizados e aviltados na sua fé e cidadania. Intolerância que retrata incoerência e a pouca crença dos que se dizem pregadores do ensinamento de Deus (Olodumaré ou Zambi, para os afrorreligiosos), fonte de amor e bondade.

O Estado é leniente e despreza o ordenamento constitucional, que garante ser “inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.
 
 

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