Correio Braziliense
postado em 21/01/2020 04:08
A troca de comando na Secretaria Nacional de Cultura, promovida às pressas depois das nefastas declarações do ex-chefe da pasta, Roberto Alvim, que repetiu discurso do nazista Joseph Goebbels para lançar premiação nacional na área, é apenas a ponta de um gigantesco iceberg. Ou, ainda pior, de duas ameaçadoras massas de gelo que ainda parecem invisíveis.
O primeiro iceberg é o da intolerância, que insiste em dominar o subliminar das relações sociais no país, promovendo a repetição de discursos e atitudes racistas, homofóbicas, xenófobas e afins. Casos como o da mulher que se recusou a entrar no carro de aplicativo dirigido por um motorista negro, em Belo Horizonte, ou do jovem baleado por beijar outro homem em um bar de Camaçari, na Bahia, infelizmente se repetem com frequência absurda no país e revelam, além do atraso, a ineficácia da Justiça.
Os números do preconceito religioso também assustam, num Estado supostamente laico, sobretudo com repetidos ataques a centros de crenças de matriz africana. Isso, sem contar os casos de feminicídio, que cresceram 4% no Brasil em 2019, com alta ainda superior nos grandes centros urbanos. O desrespeito ao diferente nos assoberba todos os dias, e a falta de punição à altura reforça padrões de intolerância.
O outro iceberg cuja ponta foi exposta no vergonhoso episódio envolvendo Roberto Alvim é a polarização da cultura e sua consequente desvalorização — inclusive do ponto de vista econômico, pois se trata de uma atividade fomentadora, capaz de gerar milhares de empregos. Como disse o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, em repúdio ao grotesco vídeo do ex-secretário, “a arte é, na sua essência, transformadora e transgressora”. Sendo assim, ela vai sempre agradar e desagradar, na superfície, para remexer, demolir e reerguer as profundezas da nossa cultura.
A arte, como uma dolorosa injeção, vem para aliviar os males que sequer sabemos que carregamos; por isso, tem a liberdade como atributo inegociável. Nos regimes autoritários, de direita e de esquerda, a arte é encomendada para atender a preceitos ideológicos e estéticos. Perde totalmente o sentido, vira peça de propaganda.
Convidada para ocupar a Secretaria de Cultura, a atriz Regina Duarte terá uma árdua tarefa pela frente. Além de recuperar o prestígio da autarquia, deverá elevar a cultura à condição de origem: a de peça fundamental na representação do país. Se o fazer cultural representa o conjunto de hábitos, crenças e conhecimentos de um povo, é inaceitável que haja, em ações oficiais, qualquer tipo de segregação ou exclusão. A cultura reflete os anseios, inquietações e sonhos de todos os cidadãos. Se assim não o fizer, será apenas propaganda.
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