Opinião

Artigo: "Elas falam"

Correio Braziliense
postado em 25/01/2020 11:00

“Eu disse: o meu sonho é escrever!
Responde o branco: ela é louca.
O que as negras devem fazer...
É ir pro tanque lavar roupa.”
                               Carolina Maria de Jesus


O documentário Elas Falam: narrativas de trajetórias de professoras negras no Distrito Federal, produzido pela professora Renata Parreira, apresentado em sua versão experimental no Simpósio Sernegra, em novembro de 2014, e no Festival de Cinema em Avanca, em Portugal, em 2015, apresenta a trajetória de cinco professoras negras do Distrito Federal.

Nos depoimentos, elas narram suas histórias de trabalhadoras do sistema educacional. Elas falam (2015) é composto por uma linguagem prazerosa e didática, e nos possibilita compartilhar da memória afetiva de quem encontrou, no ato de ensinar, uma aprendizagem que se configura como verdadeira lição de vida pessoal e profissional.

As protagonistas — Lydia Garcia, Neide Rafael, Margareth Oliveira, Marizeth Ribeiro e Waldicéia Teixeira de Moraes — contam suas histórias de como sonharam e se tornaram professoras. Com destreza, elas tecem um alinhavado da realidade e nos conduzem a ver, sentir e ouvir para além do que está projetado na tela.

Renata Parreira nos conta que, ao enfocar essas mulheres negras, pretendeu usar a tela como espelho, possibilitando a outras professoras negras a oportunidade de se enxergarem no reflexo da tela, por meio das narrativas contadas, e ao mesmo tempo dando a professoras não negras a possibilidade de promoverem uma educação antirracista com base nas experiências compartilhadas no filme.

Sonhos e realidade traçam a trajetória política e profissional dessas professoras que transformaram estratégias de ensinar em metodologias de uma educação plural e antirracista. Entre alegrias e esperanças, “elas falam” também das dificuldades individuais e coletivas que enfrentaram e das relações humanas dentro e fora das escolas.

Aos poucos, e na medida certa, Renata Parreira estabelece uma narrativa fílmica que embasa ações de professoras negras na luta por uma educação estruturada em conhecimentos e ativismos, que fortalecem e salientam os lugares de fala pertencentes a mulheres, mães e professoras negras do Distrito Federal.

Nas imagens, prevalece um discurso verbal, que enfatiza a dimensão plástica, visual e sonora de um documentário participativo e poético. A condução dos depoimentos e imagens provoca sensações afetivas de um argumento com histórias e experiências de interação e nascimentos do tornar-se professora negra num contexto de enfrentamento do racismo.

Pioneiras na implementação da Lei Federal nº 10.639/2003 — que estabelece a obrigatoriedade do ensino de “história e cultura afro-brasileira” dentro das disciplinas constantes dos currículos dos ensinos fundamental e médio — as professoras falam de experiências dentro e fora de sala de aula, de como o ato de ensinar preconizou o aprender e desenvolver uma educação antirracista antes mesmo do processo de construção da Lei, uma das primeiras sancionadas pelo então presidente Luís Inácio Lula da Silva (9/1/2003). Seu propósito era o de valorizar a atuação dos povos africanos na história da humanidade.

Renata relata que buscou encontrar ressonância nas vozes das docentes negras, propiciando que essas vozes ecoassem mundo afora e viabilizando o trabalho desenvolvido por elas, com o intuito de construção de uma “Pedagogia Antirracismo”. Conta, ainda, que os saberes e fazeres traduzidos nas práticas pedagógicas são o verdadeiro legado — fontes de inspiração e alimento da alma.

Elas falam da defesa de uma educação pública e democrática concebida como base de uma sociedade justa e democrática, onde o ato de educar possibilita formas de intervenção no mundo e transformação da realidade, como sonhou o educador Paulo Freire. Mira-se um contexto histórico, social e cultural no qual foram criadas e de como a consciência sociopolítica, racial e de gênero determinam a presença da diversidade em suas salas de aula.

Tanto no filme quanto na vida,“elas falam” e nos contam suas histórias, dividem suas experiências de ensinar temas étnicos raciais propiciando uma escola criativa, na qual a linguagem oral e escrita são instrumentos didáticos pedagógicos de construção do prazer, das ciências e das artes. O engajamento dessas mestras, mostra-nos o filme, aponta para uma lógica dos acontecimentos e vivências de educadoras que tomaram consciência de suas negritudes, pois como diria Neuza Santos, mulheres que “se tornaram negras” fizeram e fazem a diferença na vida de muitas pessoas, a começar dos alunos, de suas famílias e dos colegas de profissão.

Do início ao fim, o audiovisual mostra a importante luta liderada por estas mulheres negras que perceberem ainda na infância que a cor da pele era vista como uma diferença resultante na discriminação racial em diferentes contextos. Constroem suas vidas na luta contra o racismo, escolhem profissões que as possibilitam transformar um contexto de dor em amor.

As professoras perceberam na infância a dor do racismo e da discriminação racial. Ao longo da trajetória profissional, celebraram a diversidade como elemento essencial de respeito às diferenças. O desejo de contribuir com a construção de identidade de crianças afirmadas as acompanhou. Elas falam e suas vozes ecoam mensagens de amor e respeito à diversidade em todos os cantos.

*Edileuza Penha de Souza, cineasta e ativista do Movimento Negro
 

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