Opinião

Duzentos mil brasileiros são insignificantes?

Correio Braziliense
postado em 31/01/2020 04:15
Está em pauta no Congresso Nacional o PL 442/1991, proposto pelo então deputado Renato Vianna (MDB-SC). O texto original era específico quanto à derrubada da proibição do Jogo do Bicho, entretanto, muitas outras ideias foram apensadas, e o projeto agora é o Marco Regulatório dos Jogos, incluindo apostas on-line e cassinos. Visando buscar informações, em dezembro de 2019, o deputado Leonardo Monteiro (PT-MG) fez um requerimento de audiência pública no Congresso (REQ. 119/19), convidando diversos setores. Segundo ele, há aspectos sociais, de saúde e financeiros que precisam ser levados em consideração.

Um dos presentes foi o coordenador da Frente Parlamentar Mista pela aprovação do Marco Regulatório dos Jogos, deputado Bacelar (PODE-BA), que nas suas considerações finais, afirmou que, segundo a Organização Mundial da Saúde ( OMS), a prevalência de pessoas com vício patológico em jogos no mundo é entre 0,2% e 0,3%. Há alguns problemas nessa declaração, a começar que a prevalência estimada vai de 0,1% a 6% da população e não a 0,3% como afirmado. Os dados são do trabalho “Epidemiologia e impacto do jogo patológico e outras ameaças relacionadas a apostas” (2017).

Para nós, o que mais chama a atenção na declaração é o desdém que Bacelar mostra ao mencionar esse índice, afirmando que o total de doentes é insignificante no debate da liberação. Se pegarmos o menor índice da estimativa da OMS (0,1%) e colocarmos na população brasileira (210 milhões de pessoas) são 210 mil pessoas com potencial para desenvolver compulsão patogênica por apostas.

Para comparar: segundo a Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein, a taxa de prevalência de esclerose múltipla é de 0,002%, sendo 40 mil doentes no Brasil — menos de um quarto dos possíveis ludopatas. Outra doença autoimune rara é a miastenia gravis, com prevalência de 0,03%, segundo a OMS. No Brasil, estima-se que haja 40 mil miastênicos, de acordo com o site da única empresa que fábrica o remédio de uso contínuo necessário para viver com a doença, o Mestinon.

Em outras palavras, o desdém do deputado Bacelar com os ludopatas que surgirão no Brasil equivale a dizer que podemos deixar de lado todos os brasileiros portadores de esclerose múltipla, mais todos os miastênicos e ainda sobra mais 100 mil doentes com outra patologia a serem jogados para escanteio. Isso se levarmos em conta só o índice de 0,1%.

O vício em jogos de azar é classificado com os CID-10-Z72.6 (Mania de jogo e apostas) e CID-10-F63.0 (Jogo patológico). Apesar de sua classificação como transtorno mental, não é tratado como doença no Brasil, talvez, por isso, o deputado tenha desprezado essa condição mental. Durante os episódios, o apostador passa por processos químicos e emocionais que interferem no sistema de inibição comportamental (responsável pelas vias de neurotransmissão de noradrenalina, dopamina e serotonina). Com o desequilíbrio, a pessoa experimenta sensações que podem ser de felicidade, pertencimento, coragem, euforia, que são reforços positivos. Dessa forma, sua percepção da realidade é distorcida pelos reforços positivos e negativos.

Diante desse estímulo, o organismo vai tentar reequilibrar suas funções durante a agitação experimentada no jogo, normalizando o estado químico-emocional — é isso que causa a dependência: são necessárias emoções cada vez mais fortes para atingir o estado de euforia, levando à dependência. É muito comum que os viciados em jogos se mostrem ansiosos diante de outras reuniões sociais, porque o sistema está tão desequilibrado que não consegue funcionar, principalmente nas primeiras 48 horas. Esses são os reforços negativos que dão continuidade ao ciclo do vício.

Não podemos ignorar nenhum paciente, não importa qual a prevalência da sua doença, muito menos a sua letalidade. Na Constituição de 1988, art. 196, lemos: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Mas quanto custa tratar um ludopata? Um estudo chamado The Hidden Social Costs of Gambling, feito pelo PhD Earl L . Grinols, professor de economia da Universidade Baylor (Texas-EUA), responde essa pergunta: US$ 9.393 anuais por paciente. Se somarmos metade da menor prevalência numa estimativa bem otimista, são 100 mil pessoas a serem tratadas, ou seja, um custo anual de cerca de R$ 3,7 bilhões, uma soma nada ignorável.

*Advogado e coordenador nacional do Movimento Brasil Sem Azar


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