Opinião

Teoria e prática para uma psicologia preta

As eleições de 2018 no Brasil, por exemplo, foram um fenômeno de massa com impactos nos indivíduos e nos relacionamentos

Correio Braziliense
postado em 01/02/2020 04:13
As eleições de 2018 no Brasil, por exemplo, foram um fenômeno de massa com impactos nos indivíduos e nos relacionamentos
Sou psicólogo clínico há nove anos e toda a minha experiência profissional tem sido aqui em Brasília. Desde o terceiro período da faculdade, dedico-me a entender os impactos que o contexto social causa na saúde mental dos indivíduos. Esse interesse bem como o trabalho na clínica fornecem-me um bom panorama de como interações grupais afetam nosso interior. As eleições de 2018 no Brasil, por exemplo, foram um fenômeno de massa com impactos nos indivíduos e nos relacionamentos.

Tenho questionado uma neutralidade atribuída à psicologia. O fazer profissional da análise terapêutica requer ética e imparcialidade relativa, porém, com o avanço da escuta, conseguimos identificar padrões de funcionamento subjetivo dos pacientes, e muito do público que eu atendo (pessoas negras) chega ao consultório com deficit considerável de abandono e de não pertencimento. Não seria justo que a clínica psicológica ficasse alheia a isso por meio de suposta impessoalidade. Talvez esse seja um dos limites de discussão do movimento que cresce no Brasil e que nós, psicólogos e psicólogas negras, resolvemos chamar de Psicologia Preta (uma tradução literal do movimento Black Psychology que nasceu nos Estados Unidos na década de 1960 encabeçado por psicólogos negros como Wade Nobles e Na’im Akbar, entre outros).

Na busca por respostas a esse desafio, conecto-me em 2016 a uma rede de psicólogos(as) negros(as) — atuante no Brasil — que é a Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(es) ( Anpsinep), entendendo que quase 100% do que é ministrado nos cursos de psicologia foi produzido em contextos sociais bem diferentes do brasileiro. A psicologia como uma ciência social e histórica é atingida por ideologias em voga. Tal constatação impõe-nos a necessidade de uma prática política que se encadeia ao psíquico, objetivando uma escuta alinhada à singularidade do ser que é perpassado por tramas sociais que o invadem e o alteram.

Ao perceber a necessidade de uma escuta sensível dos sujeitos que experimentam o racismo, comecei uma busca por referenciais teóricos apropriados ao desafio. A percepção trazida pela psicologia social comunitária também ajudou em diversos questionamentos. Tornar-se Negro (aliás, nome do livro da psicanalista Neusa Souza Santos, de 1983), é processo contínuo de expansão da consciência racial de si e do mundo. Ouso dizer que a estrutura inicial de se tornar um sujeito no mundo acontece duas vezes para quem é negro: uma, na descoberta de sua individualidade como pessoa, geralmente acompanhada pelo reconhecimento da palavra “eu”, e outra, na descoberta do “eu negro”. Alguns terão a sorte de descobrir seu eu negro em tenra idade, geralmente no contexto familiar, já outros, o que é bem frequente, aos 20, 30 ou 40 anos. É inegável a influência da internet e dos movimentos sociais negros para esse avanço. Com essa descoberta, dá-se um recomeço, que atinge outras áreas da vida, inclusive a relativização de relacionamentos racistas que essas pessoas carregaram durante a vida. Quem nunca ouviu uma “piada” sobre negros que todos compartilharam gargalhando?

O Conselho Federal de Psicologia regula as normas de atuação quanto ao preconceito e à discriminação racial em sua Resolução 018/2002 e também no documento Relações raciais — Referências técnicas para a atuação de psicólogos(as), de 2017. Reconhece que o racismo causa sofrimento. Em 1995, a Folha de São Paulo fez uma pesquisa que demostrava a complexidade da temática racial no Brasil. Nela, apesar de 89% dos participantes admitirem que existe preconceito em relação à cor das pessoas, apenas 10% admitiam tê-lo. Os resultados apontam o que é o racismo no Brasil: um crime sem executores. Subjetivamente, valores pejorativos são atribuídos “inconscientemente” à pessoa negra. Com isso, mata-se uma história. A vida é menorizada.

O envolvimento com o trabalho comunitário pode ser excelente estratégia de atendimento. Destaco aqui a inciativa desenvolvida há 14 anos pelo Terreiro de Candomblé Tumba Nzo Jimona Dia Nzambi, em Águas Lindas de Goiás, que tem como zelador o pedagogo Francisco Aires Afonso Filho, conhecido por Tata Ngunzetala. Quinzenalmente, a comunidade é convidada a participar de atividades desenvolvidas por voluntários. Atendimento pedagógico e artístico a crianças e adolescentes, rodas de terapia comunitária para os pais e passeios em clubes e cinemas. Por se tratar de um terreiro, aspectos da cultura afro-ameríndia desenvolvida no Brasil são abordados e discutidos. 

O trabalho social da Associação Vida Inteira é de especial relevância face à ausência de políticas públicas para aquela comunidade. Segundo levantamento da Codeplan, entre 2000 e 2012, o município de Águas Lindas foi considerado o pior lugar do Entorno de Brasília para um jovem negro viver, com 15,6 mais chance de ser assassinado do que jovens de outra raça (g1.globo.com/goias/noticia/2014/11/em-aguas-lindas-de-goias-mortes-de-jovens-negros-e-15-vezes-maior.html).

Escuta sensível aos anseios da população negra — isso não pode ser considerado simples mi-mi-mi como está na moda falar para terminar assuntos que precisam ser enfrentados. E a nós, profissionais da escuta, resta-nos estar atentos à palavra, perceber que ela guarda deslizes e entregas que nem sempre são fáceis de ouvir. Eis o desafio que nos anima.
 
*Vinicius Dias é psícólogo clínico 

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