Correio Braziliense
postado em 05/02/2020 04:25
A prisão preventiva, nessa nova quadra da história, tem sido um marco do novo sistema processual penal voltado aos anseios populares do punitivismo, e parece estar ditando um novo rumo no direito penal, consagrando-se como regra quando deveria ser a exceção. Perderam importância os seus requisitos legais, e pouca atenção é dada aos seus fundamentos, eis que estes nem mais subsistem por ocasião da segregação cautelar na vasta maioria dos casos. O fato é que a grande repercussão midiática transformou-se em indicativo supralegal da sua necessidade.
Ao analisarmos grande parte das decisões, parece que se estabeleceu uma espécie de arte divinatória, ou seja, uma previsão sem qualquer métrica de probabilidade de que o suspeito solto poderia interferir no andamento da instrução probatória. Na era do justiçamento, prende-se cautelarmente por fatos há muito ocorridos, em absoluta dissonância da exigência de contemporaneidade com os fatos que ensejaram a prisão.
De outro lado, as cautelares alternativas à prisão praticamente foram esquecidas — embora tenham sido legalmente reforçadas há poucos anos. Prefere-se prender do que as aplicar, quando o correto seria o inverso. Em que pese a Constituição Federal traga em seu bojo o princípio da presunção de inocência, não é o que as decisões têm refletido. A prisão preventiva deve ser imposta quando se esgotarem as possiblidades das cautelares diversas da prisão, e isso é (ainda mais) explicitado com o início da vigência da Lei nº 13.964/2019.
É que até as alterações promovidas pela nova lei, a possibilidade de revisão de decisões de prisão cautelar esbarrava na amplitude e imprecisão dos conceitos legalmente insculpidos. Exigia-se meramente que a decisão de prisão fosse fundamentada, o que obrigou os tribunais superiores a lançarem mão do conceito de fundamentação idônea, mas que, dada a amplitude conceitual, não resolveu o problema.
A Lei 13.964/2019, entretanto, passou a complementar os conceitos abstratos, referindo-se expressamente ao tipo de fundamentação que a decisão que decreta uma prisão preventiva deve contemplar. É o caso da nova redação dada ao § 2º do artigo 312 do Código de Processo Penal, que exige que a decisão seja fundamentada no “receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada”. E ao textualmente expressar o óbvio ululante, muitas decisões descabidas poderão ser mais fácil e rapidamente revistas pelos tribunais.
É claro que a lei não pode prever todos os tipos de fundamentações possíveis, até porque esse não é o papel da legislação processual penal, devido aos mais variados desdobramentos passíveis de ocorrer em uma investigação ou processo. Sabedores dessa impossibilidade, foram muitos felizes os propositores e estudiosos por trás da novel legislação ao prever, então, o que não pode ser tomado por fundamentação adequada.
Em seis incisos, a prisão preventiva não poderá mais ser decretada sem que seja efetivamente analisado o caso concreto, exigindo, inclusive, que seja demonstrado o motivo pelo qual eventual precedente de tribunais contrário à conclusão do magistrado não seja aplicável ao caso sob judice. Havendo identidade fático-jurídica entre casos, não é possível que haja decisões absolutamente opostas. A velha frase de “cada cabeça, uma sentença” deve encontrar certos limites, pois, do contrário, reforça a insegurança jurídica em que vivemos, que afeta não só investigados e o direito penal, mas culmina por afastar até mesmo investimentos, dada a disparidade que reina quanto ao resultado de demandas idênticas.
Nesse sentido, em recente entrevista, o ministro do Superior Tribunal de Justiça Sebastião Júnior alertou que é preciso acabar com a ânsia de vingança que leva ao atropelo de entendimentos e, enfaticamente, se manifestou favoravelmente às medidas cautelares alternativas à prisão. Alertou o ministro, ainda, que se parte de uma premissa equivocada na qual o indivíduo investigado é automaticamente culpado. Esses fatos demonstram um entendimento perverso e contrário à Constituição Federal, que prevê, como referido, a presunção da inocência.
Uma decisão com aparência de legalidade é tão autoritária quanto aquela sem qualquer fundamento legal, e, ao se tratar de prisão sem qualquer indicativo próximo de condenação, em muito o atual momento assemelha-se à época ditatorial. Quiçá agora, com a sanção de uma lei sob a égide de um novo governo e de um Congresso remodelado, as regras quanto à prisão cautelar inseridas no que se denominou “pacote anticrime” levem a prisão cautelar ao seu devido lugar processual: o final da fila.
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