Opinião

Artigo: O Oscar da desigualdade

Correio Braziliense
postado em 13/02/2020 04:06
Parece que a pobreza e a desigualdade estão deixando de ser vistos como fenômenos naturais. A necessidade urgente de enfrentá-los vem ganhando espaço na agenda global.  Primeiro foi Davos, que nos últimos eventos tem dado destaque especial ao tema. Junto com as questões ambientais, tornou-se alvo de acirradas discussões, envolvendo a cúpula política e econômica mundial. Agora, foi a vez do Oscar que, além de dedicar o prêmio de melhor filme a Parasita, incluiu, entre os nominados nesta categoria, o Coringa e, na de melhor filme internacional, Os Miseráveis.

Esse trio de incríveis produções aborda o tema das relações entre pobreza, desigualdade, exclusão e violência. O interessante é que as histórias não acontecem em países pobres da África Subsaariana ou da América Central, nem mesmo no Brasil. Elas acontecem em Seul, numa Gothan City, que simboliza Nova York, e em Paris. Os pobres, nesses filmes, passam longe de nossa situação de extrema pobreza, o que nos leva a refletir sobre os conceitos de pobreza absoluta e pobreza relativa.

Os exemplos típicos da pobreza absoluta são nossos indigentes, que vivem com menos de R$ 145 por mês, sem acesso à água tratada, a saneamento básico, à habitação, a trabalho, à justiça, a transporte, à educação de qualidade ou ao atendimento de saúde, em condições mínimas de eficiência.

A pobreza relativa, que é o caso dos personagens dos filmes, ocorre quando uma família, apesar de ter o mínimo necessário para sobreviver, não dispõe dos meios necessários para viver de acordo com a sociedade em que está inserida. Assim, em países com alta renda per capta, existem famílias que se consideram, e são consideradas pobres, apesar de terem uma situação socioeconômica muito acima da pobreza absoluta.

Em Parasita, os pobres de Seul viviam em subterrâneos, mas em condições muito melhores que os moradores de nossas favelas. Seus filhos pareciam ter tido acesso a uma boa educação, o que lhes dava condições para se fazerem passar por universitários ou por profundos conhecedores de artes. Os pais conseguiam se mimetizar em motorista ou governanta para servir a uma família rica. Não fosse pelo “cheiro de pobre”, poderiam eternizar a farsa. Enfim, a família era considerada pobre, em termos relativos.

O Coringa também não se enquadrava na categoria de pobreza absoluta. Vivia em um apartamento precário, mas em nada parecido com as habitações dos nossos “bairros populares”. Tinha acesso a algum tipo de trabalho e contava com uma rede de proteção social, que lhe garantia medicação e atendimento psicológico (de qualidade duvidosa).

Os personagens de Os Miseráveis viviam em um bairro de Paris, habitado por todo o tipo de grupos excluídos, onde predominavam conjuntos habitacionais, bem servidos de transportes públicos e de serviços sociais, incluindo o de segurança.

A exemplo da pobreza, a desigualdade também poderia ser caracterizada como absoluta e relativa. A absoluta, medida por meio do Índice de Gini, representaria a diferença de renda entre ricos e pobres. A desigualdade relativa seria a diferença entre as oportunidades a que têm acesso ricos e pobres. Quando esse diferencial ocorre em sociedades que se acreditam igualitárias, potencializa-se a percepção de desigualdade. São sociedades em que igualdade e a Justiça parecem ser considerados “valores inquestionáveis”. Crê-se que idênticas oportunidades são oferecidas a todos, e que vencer na vida depende do mérito e do esforço de cada um. Nelas, a profunda incongruência entre o ideal e o real gera dois fenômenos distintos.

Por um lado, justificam-se a discriminação, a exclusão e até o extermínio dos considerados menos capazes, preguiçosos ou inferiores. Por outro lado, potencializa-se a frustação, a falta de perspectiva e o sentimento de injustiça. Enfim, nos três filmes, esse sentimento de injustiça desembocava em brutal e incontida violência. Mas será que a associação entre pobreza, desigualdade, sentimento de injustiça e violência seria sempre inevitável?

A Índia, por exemplo, com altos índices de desigualdade, tem na religião a justificativa para uma estrutura de castas, baseada na ideia de que os seres humanos são naturalmente desiguais. A partir daí, a desigualdade não parece gerar violência.  Por outro lado, os dados demonstram que altos níveis de desigualdade (absoluta ou relativa), em uma sociedade que se considera igualitária tendem a transformar-se em verdadeira “bomba-relógio”.

Penso que os três filmes retratam bem essa realidade, mas confesso que Os Miseráveis foi o que mais me tocou. Ele focaliza as consequências desse processo na juventude. As novas gerações de imigrantes, oriundos de todos os cantos mundo, e vivendo no país da “igualdade, fraternidade e liberdade”, no momento em que perdem as perspectivas e a esperança, voltam-se cruelmente contra toda a ordem estabelecida, inclusive contra suas próprias lideranças. Na verdade, “já vi esses filmes” em minha experiência como educadora nas favelas do Rio de Janeiro e... O final não era nada feliz.
 
 
 



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