Correio Braziliense
postado em 15/02/2020 04:14
Um neto de dezesseis anos me escreve dizendo que morreu um pouco ao saber do acidente fatal que vitimou um astro do basquete americano. “Vô, não era um jogador qualquer”, Alex me diz, “mexeu muito comigo”. Explico ao garoto que nos projetamos em quem admiramos, principalmente quando fazem coisas de que não somos capazes. Grandes atletas, que realizam façanhas inacessíveis para nós, não são apenas objetos de admiração. Somos um pouco eles, e eles são um pouco nós. A morte deles representa, muitas vezes, a morte de uma parte de nós mesmos. O atleta negro, um palmo mais alto do que o loirinho Alex, vinte e poucos anos mais velho, levava, por mais que pareça ilógico, um pedaço do garoto. E esse pedaço morreu em um acidente de helicóptero, o mais seguro e confortável dos helicópteros civis. Desta morte, com certeza, Alex vai se recuperar.Eu mesmo já me recuperei de mortes piores. Mortes, sim, no plural. Era o dia 5 de fevereiro de 2014, 11 horas da noite, eu me preparava para deitar. Tinha sido um dia movimentado, trabalhara na Editora, escrevera um pequeno texto, cumprira meus 30 minutos de bicicleta ergométrica, tinha namorado minha mulher. Segundo o médico, minha saúde estava ótima: tinha feito acabado de realizar todos os exames prescritos pelo cardiologista e uma semana atrás ele tinha me cumprimentado pelos resultados apresentados. De repente, uma dor desagradável dor no peito. Um calor intenso. Muito suor. Vejo que não estou bem. Decidimos, minha mulher e eu, ligar para o cardiologista. Ele manda eu me dirigir, imediatamente, para o hospital.
Chamamos um táxi, eu encharco minha roupa de suor enquanto indico o melhor caminho para o Einstein, o motorista era novo, não conhecia. Felizmente não são 6 horas da tarde, sem transito chegamos depressa. O taxi para na entrada principal, nenhum de nós sabe por onde se chega ao Pronto Atendimento. Aviso o porteiro que estava enfartando, ele me dispensa da burocracia e indica o caminho. Ainda encontro um primo que não vejo a tempos, explico que não posso parar, não estou legal, meu caro. A dor no peito piora. O lenço que sempre carrego no bolso da calça já está molhado também, vejo que minha mulher está angustiada, tento consolá-la. No final do corredor explico que sou cliente do Dr. Fulano, médico do hospital, a enfermeira já tinha sido alertada para me esperar e pergunta como cheguei, digo que de táxi e caminhando, ela diz “Meu Deus” e manda eu deitar na maca. Deito. E morro.
Sim, morri pela primeira vez lá pelas onze e meia da noite de 5 de fevereiro de 2014 em uma maca do Pronto Atendimento de hospital Albert Einstein. Mas não foi só. Ouço um burburinho confuso, vozes de todo tipo. Agora parece que estou vivo. Muita gente em torno de mim, não consigo me mexer, alguém põe minha cabeça de lado para que meu próprio vômito não impeça minha respiração. “O que esse camarada comeu”, pergunta alguém. Tento me lembrar em que consistiu meu jantar, mas não dá tempo: Morro uma segunda vez. Agora entro no interior de um caracol gigante, muito escuro, mas consigo reconhecer uma imensidão de conhecidos que saem das molduras para se apresentar. A imagem não é a cores, mas em preto e branco. Tento estabelecer uma constante: serão todos mortos, como eu? Não, tem gente que eu imagino estarem vivas, embora não os veja há bastante tempo.
Acordo da morte já pela terceira vez. Mais gente ao meu redor, recebi choques elétricos que me levantaram da maca, não estou confortável. “Onde está minha mulher”, pergunto. O pessoal se dá conta de que ela estava todo o tempo ao meu lado presenciando a luta dos encarregados de me trazer de volta à vida. Alguém diz que não sabe se tenho condição física e vontade de viver para suportar mais a violência do desfibrilador. Não era um espetáculo bonito de se ver...
Mandam minha mulher sair do recinto. Ela não viu, mas me contaram que ainda morri uma quarta vez e, teimoso, uma quarta vez ressuscitei. A morte resolveu desistir, por um tempo, pelo menos. Depois, a rotina: colocação de um stent, alguns dias de UTI, vários no quarto, quilos de remédios, médicos fazendo sempre as mesmas perguntas, alguns enfermeiros simpáticos, outros impacientes, primeiros passeios monitorados pelo corredor. Lembro-me de um ex-presidente que explicou que a leitura é como o exercício, chato, mas necessário. Discordo. Ler é muito agradável. Morrer é chato.
* Historiador, professor titular da Unicamp e diretor da Editora Contexto
* Historiador, professor titular da Unicamp e diretor da Editora Contexto
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