Opinião

Artigo: Criacionismo, terraplanismo e ciência

Correio Braziliense
postado em 17/02/2020 04:34
Em 12 de fevereiro, Charles Darwin completou 201 anos, e o mundo celebrou o Darwin Day como reconhecimento ao legado que ele deixou. Com base em raciocínio lógico e evidências, ele propôs que as espécies mudam ao longo do tempo e compartilham ancestrais comuns, o que ficou conhecido como Teoria Evolutiva. Essa teoria é aceita pelos cientistas e por diversas instituições religiosas, incluindo o Vaticano. Ela é ensinada nas escolas do mundo todo porque, além de explicar fenômenos da vida, induz o aluno a pensar, associar fatos e tirar suas próprias conclusões. Infelizmente, vemos agora tentativas de se inserir nos currículos escolares explicações alternativas para essa teoria, como o Design Inteligente, que é basicamente o Criacionismo vestido com roupagem científica.

O Criacionismo defende que todos os seres vivos surgiram ao mesmo tempo, exatamente como são hoje, por criação divina. Ele está presente na Bíblia e em muitos mitos ao redor do mundo. Algumas culturas antigas imaginavam também que a Terra é plana e repousa nas costas de elefantes apoiados sobre uma enorme tartaruga. A curiosidade humana, entretanto, sempre nos levou a querer entender como funcionam as coisas e várias ideias primitivas foram substituídas por outras que fazem mais sentido.

Uma boa maneira para testar qual ideia faz mais sentido, entre duas opções, é o método científico. No caso da Terra, podemos observar o contorno do astro que vemos projetado durante um eclipse, ou observar o horizonte de um local bem alto. Vale também perguntar para as pessoas se já estiveram no local onde o mundo acaba, ou pesquisar fotografias da Terra feitas por astronautas ou satélites. Claro que esse tipo de pesquisa exige muitos cuidados, como repetições e honestidade intelectual. Mas o investimento vale a pena. Usando o método científico, os gregos perceberam que a Terra é redonda há mais de 2.000 anos, e essa constatação só tem sido confirmada.

A Teoria da Evolução tem história semelhante. No século 18, vários pensadores questionaram a imutabilidade das espécies, e o Conde de Buffon chegou a propor um ancestral comum para homens, macacos e demais mamíferos. A ideia de que espécies mudam ao longo do tempo e compartilham ancestrais comuns vem sendo confirmada desde essa época, por uma imensa quantidade de evidências oriundas de várias áreas do conhecimento, como fósseis, distribuição geográfica, anatomia e DNA.

A Teoria Evolutiva nos fornece bases para entender fenômenos cotidianos, como a intolerância ao açúcar do leite (lactose) em adultos ou as restrições ao uso de antibióticos. Quando pequenos digerimos bem a lactose, mas com o passar do tempo muitas pessoas deixam de produzir a substância que realiza sua digestão. Para os criacionistas, isso é inexplicável; a Teoria da Evolução nos oferece uma dica: isso é vantajoso para a reprodução. A falta de digestão da lactose causa um desarranjo intestinal, o que levou nossos antepassados a buscar outros tipos de alimento a partir de certa idade. Com isso, as mães podiam voltar a engravidar, uma vez que o aleitamento inibe uma nova gravidez. Nos termos da Teoria da Evolução, houve seleção natural dessa característica.

As populações com essa característica tinham mais descendentes ao longo das gerações. Com os antibióticos, ocorre algo parecido. Há bactérias naturalmente resistentes a antibióticos, mas elas não se reproduzem mais do que as outras, pois competem pelos mesmos recursos. Entretanto, se houver um pouco de antibiótico no local onde elas vivem, as bactérias sensíveis morrerão e as resistentes se multiplicarão rapidamente, criando gerações de bactérias nas quais o antibiótico não faz efeito. Haverá seleção das formas resistentes; para evitar isso, é preciso utilizar esses remédios com muito cuidado. Entender a teoria evolutiva implica adquirir ferramentas para explorar diversos tipos de questões cotidianas.

É lamentável que no século 21 ainda haja quem defenda a Terra plana e estimule contestar a evolução biológica por meio do ensino do Criacionismo. O contraponto foi feito historicamente e precisamos seguir em frente. Mais importante do que reproduzir explicações que não resistem a evidências, é oferecer para a sociedade educação de qualidade, fundamentada em informações e conhecimentos consistentes com a realidade. A formação de cidadãos bem instruídos e com capacidade de análise crítica é a única forma de construirmos um país economicamente forte, ambientalmente sustentável e socialmente justo.

*Rosana Tidon é graduada em biologia, mestre em entomologia e doutora em genética pela Universidade de São Paulo. É professora titular na Universidade de Brasília, onde desenvolve atividades de ensino e pesquisa na área de biologia evolutiva desde 1996. Foi pesquisadora visitante na Universidade de Harvard (Estados Unidos) e professora visitante na Universidade de Göttingen (Alemanha)

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