Opinião

Artigo: Cade, Brics e a economia digital

Correio Braziliense
postado em 20/02/2020 04:06
Numa miríade de idiomas, o primeiro relatório sobre economia digital das autoridades da concorrência do Brics foi lançado em setembro do ano passado em Moscou, na Rússia. O evento ocorreu durante a sexta edição da Conferência de Concorrência do Brics, que acontece a cada dois anos, revezadamente nos países-membros — Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Para vencer a barreira do idioma, aplicativos de tradução on-line ajudavam a navegar pelo alfabeto cirílico na capital russa. Nada mais adequado para o tema do evento e do relatório: a era digital.

O relatório resultou do esforço conjunto do grupo de trabalho das autoridades da Concorrência do Brics, criado na edição anterior da Conferência que o Brasil sediou em Brasília em 2017. Na ocasião, as Autoridades elegeram a economia digital como um dos temas centrais que desafiariam sua atuação e constituíram o grupo de trabalho de economia digital para o compartilhamento de experiências e cooperação para o aprimoramento de suas respectivas políticas de concorrência relacionadas ao tema.

O grupo de trabalho teve, como coordenador principal, o Brasil e, como co-chair, a Rússia. Representantes de cada um dos países do Brics reuniram-se presencialmente e não presencialmente para discutir a temática e contribuíram respondendo a questionários que embasaram a elaboração do relatório. Ao permitir criar, estreitar e consolidar canais de comunicação e interação entre as agências, a publicação desse primeiro relatório representou um importante marco para a cooperação entre as Autoridades da Concorrência do Brics.

O relatório fornece uma visão geral do estado da arte da política de concorrência relativa a mercados digitais e sua aplicação na prática no Brasil, Rússia, Índia e África do Sul, particularmente em tópicos como avaliação de poder de mercado, inovação e concorrência dinâmica, aquisição de startups por incumbentes, barreiras à entrada na economia digital, precificação algorítmica e big data. Além disso, a publicação apresenta exemplos de como as Autoridades da Concorrência do Brics estão utilizando tecnologias e ferramentas de dados para apoiar suas atividades, por exemplo, para a detecção de cartéis. Por fim, o relatório apresenta casos selecionados que exemplificam a atuação das Autoridades da Concorrência sobre a economia digital.

A publicação identifica alguns dos principais desafios relatados pelas autoridades da concorrência na aplicação da política de concorrência nos mercados digitais. Eles incluem práticas exclusionárias relacionadas à concentração de dados, possíveis limitações ao multi-homing, ou seja, à utilização, por exemplo, de diferentes aplicativos para um mesmo fim; a adoção de cláusulas de nação mais favorecida; tratamento discriminatório com base em tecnologias de dados e perfis de usuários; colusão algorítmica e restrições verticais no comércio eletrônico.

O processo de elaboração do documento também revelou que as Autoridades da Concorrência estão comprometidas, dentro de suas próprias agendas, a uma constante autoavaliação se suas respectivas leis e políticas de concorrência continuam adequadas em uma economia digital de ritmo acelerado. Algumas autoridades, como a russa FAS (Federal Antimonopoly Service), têm se empenhado em trazer mudanças à estrutura existente por meio de emendas às leis atuais. Outras, como o CCI (Competition Commission of India) indiano, estão avaliando propostas para alterar as ferramentas analíticas existentes. E ainda outras, como o Cade, estão avaliando possíveis adaptações às leis e políticas de concorrência existentes para a era digital.

O relatório também descreve outro ponto de convergência: a necessidade de cooperação, tanto nos fóruns internacionais, à luz da natureza multifacetada e global da economia digital, quanto na arena doméstica. A natureza sem fronteiras da economia digital, exige maior cooperação internacional, especialmente no design de soluções que potencialmente afetarão várias jurisdições. Nesse sentido, a cooperação com o Brics é apenas um exemplo da atuação internacional do Cade, que alcança também organismos multilaterais como a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e ICN (International Competition Network), além de cooperação bilateral com diferentes países.

No nível doméstico, por sua vez, como a economia digital afeta diferentes dimensões políticas como privacidade, proteção do consumidor e concorrência, as autoridades responsáveis por cada uma dessas áreas, que muitas vezes são diferentes, precisam cooperar para criar políticas coesas e eficazes. Num ano em que, no Brasil, está prevista a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, essa cooperação se reveste ainda de mais importância.

A agenda de economia digital revela o protagonismo do Cade tanto nacional quanto internacionalmente no seu compromisso de defender e promover a concorrência. Essa sua atuação sem fronteiras, mas atenta às especificidades da economia nacional, é que permitirá garantir um ambiente de negócios propício ao desenvolvimento do país e traduz um pouco do dinamismo do Cade — dinamismo este reconhecido internacionalmente.
 
*Alexandre Barreto é presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) 

*Patrícia Morita Sakowski é economista-chefe adjunta

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