Opinião

Artigo: Jesus dos oprimidos

A Mangueira lembrou que Jesus está no negro da favela; no pobre perseguido pela polícia; no índio, cujas terras e existência são aviltadas pelos poderosos e pelos garimpos; na comunidade LGBTQ, desprezada, reduzida à aberração e transformada em antítese da salvação; na mulher, oprimida pelo machismo e sentenciada à morte pelo próprio companheiro

Correio Braziliense
postado em 26/02/2020 11:25
A Mangueira lembrou que Jesus está no negro da favela; no pobre perseguido pela polícia; no índio, cujas terras e existência são aviltadas pelos poderosos e pelos garimpos; na comunidade LGBTQ, desprezada, reduzida à aberração e transformada em antítese da salvação; na mulher, oprimida pelo machismo e sentenciada à morte pelo próprio companheiroQuem não entendeu o enredo da Estação Primeira de Mangueira perdeu uma ótima oportunidade de um vislumbre sobre a figura de Jesus Cristo longe daquela preconizada pelos “vendilhões do templo”, os donos de igrejas neopentecostais que negociam o “caminho para a salvação” e loteiam o paraíso. Li comentários de cristãos horrorizados com o Jesus levado à Marquês de Sapucaí.

Denunciaram blasfêmia por misturar a figura de Jesus a uma festa pagã. Espero, sinceramente, que a Mangueira se sagre campeã. Seria o gran finale de sua mensagem aos “homens de bem”, que cultuam o Cristo, mas defendem o uso de armas. A escola de Pixinguinha, Cartola, Dona Zica, Jamelão e Beth Carvalho subverteu o fundamentalismo religioso que enxerga o Messias sem viés interpretativo.

A Mangueira lembrou que Jesus está no negro da favela; no pobre perseguido pela polícia; no índio, cujas terras e existência são aviltadas pelos poderosos e pelos garimpos; na comunidade LGBTQ, desprezada, reduzida à aberração e transformada em antítese da salvação; na mulher, oprimida pelo machismo e sentenciada à morte pelo próprio companheiro. O tripé com a imagem do jovem de cabelo oxigenado preso à cruz e o corpo crivado de balas é poderosa mensagem de cunho social.

Em uma das alas, a máxima “Bandido bom é bandido morto” também vai na contramão do cristianismo, segundo o Jesus da Mangueira. Um dos carros alegóricos traz as várias faces de Jesus: negro, índio, homossexual. Mais do que polemizar, uma das mais tradicionais escolas de samba do Brasil teve a intenção de abrir os olhos de quem prefere não enxergar a realidade.

Jesus nasceu pobre, filho de carpinteiro, em um estábulo na periferia de Belém. Enquanto os judeus queriam apedrejar uma adúltera, Jesus saiu em defesa da mulher; também permitiu que Maria Madalena, conhecida prostituta, se aproximasse dele. Jesus escolheu entre os mais humildes seus apóstolos e entrou em Jerusalém no lombo de um jumento.

Simplicidade, acolhimento dos menos favorecidos, amor e perdão. Todos esses temas foram transportados para a Avenida Marques de Sapucaí na forma de Jesus dos tempos atuais.

“Favela, pega a visão / Não tem futuro sem partilha / Nem messias de arma na mão” e “Porque, de novo, cravejaram o meu corpo / Os profetas da intolerância / Sem saber que a esperança / Brilha mais na escuridão”.

Os dois trechos do samba enredo são de força descomunal e representam um apelo à consciência social, a qual tem sido abandonada nós últimos anos em nome de um projeto político excludente, pseudodemocrático e fundamentalista cristão. O Jesus ao qual a elite do poder se refere está muito distante do Jesus em seu significado verdadeiro. Quem não entendeu o enredo da Mangueira prefere a cegueira.

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Tags