Opinião

Artigo: O Judiciário e a voz das ruas

Sobram na história recente exemplos de governos autoritários instalados e perpetuados apesar da realização de eleições. Não há, por outro lado, ditaduras prósperas em nações com uma Justiça autônoma

Correio Braziliense
postado em 27/02/2020 11:28
Ilustração mostra um martelo batendo numa mesa representando o Poder JudiciárioEntre os principais resultados da Constituição de 1988 estão a estabilidade democrática experimentada pelo Brasil nas últimas décadas e a solidez de um Judiciário autônomo e independente, que tem sido protagonista na resolução de questões fundamentais para o país. Constantemente, no entanto, o sistema de Justiça se vê confrontado com uma pretensa discussão sobre a obrigação de os magistrados ouvirem as vozes das ruas. É dever de um juiz, em suas decisões judiciais, atender os pedidos feitos por grupos, ainda que majoritários?

Essa reflexão passa, obrigatoriamente, pela compreensão de que a realização periódica de eleições não é a única condição necessária nem garante a existência de uma democracia. Sobram na história recente exemplos de governos autoritários instalados e perpetuados apesar da realização de eleições. Não há, por outro lado, ditaduras prósperas em nações com uma Justiça autônoma. Ou seja: autocracias podem conceber sufrágios periódicos, mas jamais se valerão de um Judiciário “independente”, nos moldes descritos pelo artigo 2º da Constituição brasileira, segundo o qual “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

Em diversos episódios recentes, o Supremo Tribunal Federal (STF), nossa Corte máxima, tem procurado dar uma resposta técnica à voz das ruas, seguindo exatamente os mandamentos constitucionais. Um dos casos mais marcantes foi aquele em que os ministros mudaram a jurisprudência sobre o cumprimento de penas por condenados em segunda instância, resgatando o intento original do inciso 57 do artigo 5º da Constituição, que estabelece que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Essa foi uma decisão tomada a despeito da cobrança feita por manifestantes, por integrantes do governo e por editorais jornalísticos.

No julgamento sobre a medida provisória que transferiu a demarcação de terras indígenas da Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Agricultura, o STF decidiu suspender o ato do Poder Executivo. Nesse caso, a posição do tribunal coincidiu com a do Poder Legislativo, que também já havia rejeitado a mudança proposta pela Presidência da República. Em outro caso, o STF fixou regras para que a Unidade de Inteligência Financeira (UIF), o antigo Coaf, repassasse informações sigilosas para a Receita e o Ministério Público, também contrariando a posição pública expressada por diversos políticos.

O maior mérito das democracias não é acatar a vontade da maioria, mas, sim, preservar e garantir os direitos das minorias. E cabe justamente ao Judiciário exercer o papel de salvaguarda da democracia, coibindo, por exemplo, eventuais abusos cometidos pelos representantes eleitos pelo povo e ações que, supostamente, refletem a vontade da maioria. Sob a ótica jurídica, portanto, acerta o STF ao sobrepor os preceitos constitucionais aos clamores das redes sociais e de manifestações de rua. Os ataques disparados pelos juízes que contrariam os interesses desses grupos nada mais são a prova de que nosso sistema constitucional está em pleno funcionamento.

A independência do Judiciário e a imparcialidade dos magistrados, como tem demonstrado o STF, são características fundamentais de uma democracia e são responsáveis por garantir à sociedade que as instituições republicanas sejam preservadas mesmo diante de eventuais instabilidades e clamores momentâneos que pretendem subverter a ordem constitucional. É preciso nunca se esquecer de que episódicas maiorias podem se tornar minorias ao sabor de humores passageiros e instáveis. Uma maioria que, hoje, se sente desatendida pode, amanhã, vir a se tornar o grupo minoritário. Por esse motivo é que as instituições precisam prevalecer sobre as vontades. Para isso, é necessário preservar as instituições, o que só é obtido por meio da proteção às prerrogativas de independência da magistratura, que permite aos juízes exercerem o papel de salvaguarda do Estado democrático de direito.

* Advogado em Curitiba e em Brasília

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