Correio Braziliense
postado em 28/02/2020 04:15
O presidente Jair Bolsonaro perde tempo e esforço com coisas de pouquíssima importância devido ao seu moralismo de almanaque. Antes de compartilhar o vídeo bisonho de conclamação às suas hostes, decidiu brigar publicamente com o carnaval, mais especificamente com o desfile da Mangueira — que não teve nenhuma sutileza no ataque que lhe dirigiu. Fosse ele menos figadal, teria se calado, porque se há algo que não tem moral para fazer crítica a governos e governantes são justamente as escolas de samba do Rio de Janeiro.
Essas agremiações carnavalescas explicam, em parte, a situação caótica a que o Estado chegou. Suas relações espúrias com a administração pública e com as comunidades em que estão instaladas são parte do descontrole. Se antes as escolas de samba eram a lavanderia do jogo do bicho, hoje sabe-se lá como sobrevivem. Subvenções públicas, cota de transmissão de TV e venda de produtos (ingressos, CDs com os sambas-enredo, patrocínio, camisetas etc.) não geram renda suficiente para sustentar toda aquela estrutura.
É preciso voltar no tempo, quando Natal da Portela (Natalino José do Nascimento) percebeu que poderia contar com o beneplácito da vizinhança ao investir parte dos lucros das suas bancas numa das representantes de Madureira — a outra é o Império Serrano. Mas, naquela época, o bicho ainda não tinha a face empresarial que assumiu quando os profissionais do submundo chegaram, a partir da década de 1970.
Natal foi substituído, tempos depois, pelo português Carlos Teixeira Martins, o Carlinhos Maracanã, representante da nova casta de mecenas do jogo ilegal. Nesse momento, emergem personagens sinistros como Luizinho Drummond (Imperatriz Leopoldinense), Castor de Andrade (Mocidade Independente de Padre Miguel), Aniz Abraão David (Beija-Flor de Nilópolis) e Capitão Guimarães (Unidos do Viradouro)— conspícuas figuras que não tinham vergonha em deixar claras suas ligações com a política. O procurador Antonio Carlos Biscaia e a juíza aposentada Denise Frossard tiveram um trabalho hercúleo para prender estes e outros banqueiros mais discretos – Zinho, Piruinha, Emil Pinheiro e Miro, por exemplo —, que foi bem-sucedido por algum tempo. Mas a mistura de estranhos interesses os colocou fora das grades, quase todos por alegarem precariedade de saúde.
O poder desses chefões começou a ser construído na ditadura militar, mais precisamente nos subterrâneos. As relações deles com torturas de desaparecimentos são contadas no excelente livro-reportagem Os Porões da Contravenção, de Aloy Jupiara e Chico Otávio. Os militares de baixo calibre precisavam de policiais corruptos, políticos amorais e senhores territoriais para, em nome da lei e da ordem, fazer sumir quem atrapalhava, e faturar com os produtos do crime. O bicho era um desses. E como dinheiro demais chama a atenção, o carnaval e as escolas de samba foram o óbvio investimento.
A explicação é essa, resumidamente. Não que essas agremiações deixem de ter validade como representantes da cultura brasileira — ao contrário, tratam-se de formidável e único espetáculo. Mas, quanto ao poder de crítica… É preferível que se prendam aos episódios históricos, que habitualmente cantam e contam com maestria.
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