Correio Braziliense
postado em 14/03/2020 04:14
O 8 de março entrou para a história da humanidade a partir de um evento trágico ocorrido na segunda metade do século 19 que resultou em carnificina. O fato da ação violenta contra mulheres trabalhadoras ter acontecido nos Estados Unidos não é obra do acaso. A lógica do capital está relacionada ao patriarcado, o que implica a naturalização da discriminação de gênero nas relações de trabalho. A própria história das mulheres no Ocidente tem sido construída sob o signo da violência. Isso alude não apenas àquelas mulheres pertencentes ao grupo hegemônico que colonizou sociedades ameríndias e africanas, mas, sobretudo, às que integram os dois últimos segmentos.
O imaginário popular está repleto de referências-problemáticas que evidenciam particularidades e hierarquizações no âmbito da condição feminina. Ainda hoje, são comuns expressões tais como “minha avó foi índia pega no laço”, dita da forma mais banal, sem nenhum senso crítico. Em um passado não muito distante, certas expressões herdadas do tempo do cativeiro ainda eram fluidas, mesmo em uma sociedade pós escravista, a exemplo do absurdo dito popular: negra para trabalhar, mulata para fornicar e branca para casar. Essa nefasta herança da casa-grande mostra uma das mais absurdas hierarquizações entre mulheres socialmente representadas de modos distintos, embora produto de construções masculinas.
Não há como valorizar o legado das mulheres sem reconhecer a grande diversidade existente entre elas, diferenças de ordem social, cultural, étnico-racial, entre outras. Se por um lado o pensamento de importantes ativistas como Rosa de Luxemburgo e Simone de Beauvoir é reiteradamente resgatado no cenário do protagonismo feminino, por outro, perdura o silenciamento em torno de pessoas como Luiza Mahin, mãe do líder negro abolicionista Luiz Gama, além da professora e romancista Maria Firmina dos Reis e outras personalidades que foram e permanecem invisibilizadas apesar de suas contribuições. Isso sem falar nos legados de mulheres indígenas, sobre as quais pouco ou quase nada sabemos a respeito.
A militante feminista Chimamanda Ngozi Adichie, ancorada em seu percurso de mulher nigeriana ambientada nos Estados Unidos, nos chama a atenção para os perigos da construção de uma história única, ao falar da sua condição de mulher negra, nascida na Nigéria frente às imposições do colonialismo cultural protagonizado pelas potências ocidentais. Tomando como base o seu texto, podemos dizer que ao tentarmos compreender as trajetórias de determinados segmentos, observaremos que não há história única quando falamos de sociedades africanas, sociedades constituídas por povos originários das Américas, ou mesmo quando nos referimos às mulheres de todo mundo. Podemos dizer seguramente que existem histórias comuns de resistências, de lutas, de enfrentamentos e sobrevivências. Todavia, ao desconsiderarmos as nuanças que determinam especificidades das condições existenciais, tornamos frágeis quaisquer argumentos em defesa de uma unidade política mais ampla e solidária.
A luta das mulheres é constituída não a partir de uma unidade absoluta, porém das convergências que permitem às mulheres de diferentes procedências se identificarem de algum modo umas com as outras. Não fosse assim, o que justificaria a existência de um feminismo negro, por exemplo? Pois bem, essa tendência apresenta grande desafio à sociedade brasileira, na medida em que problematiza o feminismo e procura dar visibilidade às suas próprias demandas, quase imperceptíveis até a sua constituição. As vozes potentes de Lélia Gonzales, Luiza Bairros, Suely Carneiro entre as afro-brasileiras; Angela Davis, Alice Walker, Bell Hooks entre as afro-estadunidenses, são algumas das contribuições robustas que alimentam o debate em torno do feminismo negro. Um fenômeno que se caracteriza, sobretudo, pelas abordagens que levam em consideração, nas palavras de Kimberlé Crenshaw, a interseccionalidade entre gênero e raça.
O interesse aqui não é o de minimizar a relevância do 8 de março, mas o de estabelecer conexões com experiências de mulheres em contextos diferentes, cujas dimensões foram ou continuam sendo alvo do apagamento histórico. Se o 8 de março possui uma dimensão simbólica, abraçada por vasto contingente feminino de forma global, o 25 de julho, por exemplo, Dia das mulheres afro-latino americanas e caribenhas, expande as possibilidades de compreensão do universo feminino. O processo para tornar-se mulher, lembrando Beauvoir, precisa ser entendido de modo que não ignoremos as circunstâncias nas quais tal construção se estabelece, por certo elas não serão as mesmas. É justamente isso que permite acreditar que o Dia Internacional da Mulher também se caracterize em ocasião propícia para se celebrar a diversidade feminina, sem sobreposições de qualquer espécie.
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