Opinião

Artigo: Enlutar por Marielle

Correio Braziliense
postado em 14/03/2020 04:14
Os dois anos do assassinato da vereadora Marielle Franco, que se completam neste 14 de março, nos lembram que defender direitos humanos em sociedades desiguais e violentas como a nossa é sempre um ato de coragem. Dizer que toda pessoa, pelo simples fato de ser uma pessoa, merece ser tratada com dignidade, liberdade e igualdade é quase contraintuitivo. As evidências sugerem o contrário: há pessoas que, sem trabalhar, têm renda; e pessoas que, mesmo trabalhando muito, não têm o suficiente para sobreviver. O acesso instantâneo à informação convive com o analfabetismo funcional. É por isso que defender direitos humanos não depende só de pensamento racional, mas de emoção também. Depende de empatia, da capacidade de se reconhecer, como humana, cada pessoa. Lembrar-se da vida de Marielle Franco e pedir por justiça é lembrar que as vidas humanas – todas elas  são dignas de respeito e, quando acabam, são dignas de luto.

A vida de Marielle jogou luzes sobre como raça e gênero produzem diferenças que desumanizam. Antes de ter sido eleita vereadora da cidade do Rio com mais de 46 mil votos, ela foi secretária da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do estado, quando desempenhou papel importante no combate às milícias. Desde então, passou a denunciar a política de segurança pública em vigor, que prende e mata muitas pessoas, mas não produz segurança. Sua dissertação de mestrado –  pesquisa sobre as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) – mostra como essa política opera a partir da diferença entre as pessoas: pessoas que moram nas periferias, em sua maioria negras e pobres, consideradas potencialmente suspeitas, e pessoas de classe média e alta, brancas, enquadradas como vítimas. Essa diferença —construída racialmente — é o que legitima políticas de encarceramento em massa, de assassinato da juventude pobre e negra e, também, de mortes de policiais militares, na ponta da política da guerra, que também não interessa a eles.

É pelo fim dessa política que Marielle se colocava. Sua execução, pouco mais de um mês após o então presidente Temer decretar intervenção federal militar na Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio, foi um recado daqueles que produzem guerra para lucrar com as mortes. Uma mensagem de que o espetáculo de tanques e armas nas ruas não mudava nada. Ao contrário, era uma continuidade. A escolha dela como alvo, dentre tantos outros defensores de direitos humanos, inclusive eleitos, sugere que, para os mandantes do crime, a vida de Marielle valia menos. Acharam que Marielle Franco era mais “matável”. A enorme mobilização social após a notícia de seu assassinato mostrou que, ainda que a igualdade esteja longe, o silêncio não mais se impõe.

Durante esses dois anos, campanhas de difamação lançadas a partir de gabinetes políticos buscaram desconstruir o respeito que a vereadora ganhou do povo de sua cidade e de todo o país. Notícias falsas foram inventadas, inclusive a associando ao crime organizado. Logo Marielle, que atendia vítimas de facções criminosas, inclusive policiais e seus familiares, porque sabia que a política da guerra na segurança pública não interessa a ninguém que empunha armas, mas a uma pequena minoria que lucra e mantém privilégios, sem correr riscos. Muita força se exigiu de sua família e dos amigos até agora: para lidar com a dor, para viver com segurança e exigir justiça, para defender a memória e o legado da vereadora, tão atacados por aqueles que insistem em negar luto à sua vida.

E a luta não acabou, porque, embora os executores do crime tenham sido identificados e presos — são ligados às milícias, como se suspeitava —  os mandantes permanecem desconhecidos. Devemos continuar transformando o luto em luta, porque é nossa tarefa potencializar e dar apoio às mulheres, pessoas negras e faveladas que querem ocupar a política para que os espaços de tomada de decisão tenham mais a cara do povo. E porque é também nosso dever preservar a memória, especialmente neste momento em que afirmar a igualdade tem tanta radicalidade.

Marielle virou nome de jardim em Paris e de rua em Lisboa. Em Brasília, a Câmara Legislativa aprovou uma lei de nossa autoria, que nomeia uma praça do SCS em homenagem à vereadora, mas o governador Ibaneis vetou o projeto. Triste decisão, que também nega luto à vida de Marielle. A escolha do nosso luto diz sobre nós mesmos, não sobre quem se foi.
 

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