Opinião

Visto, lido e ouvido

Luz e sombras

Correio Braziliense
postado em 22/03/2020 04:14
Houve um tempo em que as interrupções no fornecimento de luz era uma constante nas cidades de todo o país. Essa debilidade nas nossas fornecedoras, tanto de água quanto de eletricidade, eram bastante conhecidas e frequentes e, não raro, terminavam em letra de samba, como na marchinha carnavalesca Vagalume de Vitor Simon e Fernando Martins composta em 1954. “Rio de Janeiro/cidade que nos seduz/de dia falta água/de noite falta luz.”

Naqueles momentos de escuridão, que muitas vezes se estendia pela noite adentro, a rotina noturna mudava por completo, com todos forçosamente remetidos ao passado, postos à luz de velas ou de candeeiros. Para preencher esses momentos no breu, as rodas de conversas voltavam a ocupar o lugar da tevê e do rádio. Histórias das famílias, anedotas e mesmo as estorinhas de assombração prendiam a atenção de todos. Era como se tempo parasse e todo o progresso das ciências desaparecesse como de vista. Normalmente, todos iam à cama mais cedo. Acontecia também de a luz voltar depois de horas de interrupção. Nesses momentos, e isso era um sentimento muito comum a todos, havia um certo desapontamento momentâneo pelo retorno da energia e pelo fato de a luz elétrica ter interrompido um instante de pura magia, com cada um voltando para seu canto e sua mesmice.

Não foram poucas as vezes que esse fato ocorreu e não foram poucas, também, que o sentimento de que o retorno brusco da luz parecia anunciar o fim de um filme. Foi assim no passado e com certeza é assim também nos dias de hoje. Na verdade a ausência de luz era apenas um pretexto inconsciente para os mais novos reaproximarem dos idosos, não só pelo medo do escuro e das almas penadas que perambulam pela imaginação de muitos, mas por um apelo ancestral, escondido no íntimo de cada um e que parecia adormecido pela dispersão da luz e do progresso.

Como podia a decepção imediata do corte de energia, interrompendo as tarefas noturnas e costumeiras, transformar-se radicalmente, pouco tempo depois, na mesma decepção pelo retorno repentino da luz? Por muitos anos, todos aqueles que têm se interrogado sobre essa questão, aparentemente banal, nunca chegaram à uma resposta convincente e satisfatória.

De fato, a resposta a essa contradição entre luz e sombra ou entre a dispersão solitária e a união e o aconchego, é justamente o que parece ocorrer agora, com a quarentena forçada que muitas famílias se veem obrigadas a cumprir. Ao interromper a rotina individual e mesmo egoísta de muitos, contrariando interesses, muitos vezes ditados pelo ego moderno, o corte de energia, ou a quarentena lançou, mais uma vez, todos de volta ao passado e ao escuro, reunindo famílias em torno de um destino comum, do mesmo modo que faziam nossos antepassados em torno da fogueira. Por certo, quando a luz retornar sem aviso, interrompendo bruscamente a quarentena, por certo não serão poucos aqueles que experimentarão o mesmo sentimento de desapontamento pelo fim desse confinamento no lar que os antigos classificavam como o escrínio da vida, em que todas as memórias repousam e onde, desde a origem da humanidade, todos buscaram refúgio e conforto.
Quando a luz verde acender, anunciando o fim da quarentena, dentro do coração de muita gente, com certeza acenderá a luz vermelha da volta à rotina solitária do que é feita a vida moderna.


A frase que foi pronunciada:

“Por mais constantes que sejam as águas correndo, por mais fresco e umbroso que se alargue o vale, a paisagem é intolerável se lhe falta a nota humana. Fumo delgado de chaminé ou parede rebrilhando ao sol, que revele a presença de um peito, dum coração vivo.”

Eça de Queiroz, diplomata e romancista


Mantendo os empregos

» Começa a brasilidade para enfrentar a crise de forma criativa. A Pão Dourado contratou mais ciclistas para a entrega em domicílio. Sérvulo Batista, o proprietário, perdeu a mãe há seis meses. Com essa crise toda, imaginou a matriarca da família pedindo: “Meu filho, traga meu pão!” E assim, Sérvulo, que já sentia a clientela de cabeça branca mais afastada, criou essa solução: Qualquer coisa da padaria entregue por ciclistas. Os clientes animados com a solução criaram voluntariamente os flyers que foram distribuídos. Veja no blog do Ari Cunha.

Sem limites.

» Da mesma forma que a internet dissemina notícias falsas, há portais que trabalham incessantemente atrás da verdade. Antes de replicar qualquer informação, verifique primeiro se é verdadeira. Acabamos de receber um telefonema de uma idosa que soube que há um remédio que cura a doença causada pelo famoso vírus. Queria comprar para ela e para o marido.

Solidariedade

» Stonia Ice resolveu quebrar o gelo com a equipe do Samu. Volta e meia leva sorvete para o pessoal que tem trabalhado sem parar. Outro lugar que virou a página de notícias que angustiam foi o restaurante Vila Carioca, em Águas Claras. Colocou almoço para viagem e levou para a clínica Sabin, que também não para de trabalhar. Veja os vídeos no blog do Ari Cunha.


História de Brasília
61 termina com uma indignidade (ataque ao Binômio), uma catástrofe (circo) um aviso (penitenciária) e 62 começa sem dizer nada a ninguém. Há entretanto, esperança de consolidação do regime, da vida nacional, e a prova serão as próximas eleições. (Publicado em 04/01/1962)

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