Opinião

Artigo: Relações sociais em retrocesso e comodismo

Quando jovem universitária na década de 1970, negra com orgulho, imaginava que, aos 60 anos, aposentada, estaria vivendo em um mundo bem avançado nos campos científico, tecnológico e das relações sociais. Pois bem, não há dúvida sobre os grandes e até assustadores avanços na ciência e na tecnologia, presentes no nosso cotidiano. Identificação de pessoas por meio da íris, uso de robôs para comunicação, cirurgia no cérebro com o paciente tocando seu instrumento musical para que os cirurgiões não afetem as partes que permitem tocá-lo, são apenas bons exemplos das façanhas do homem nessas áreas.

Mas não podemos dizer o mesmo quanto ao campo das relações sociais. Um mundo mais justo, mais tolerante e menos desigual ainda não se tornou realidade. Pessoas estão sendo humilhadas, perseguidas e executadas por serem negras e pobres, pessoas que amam outras do mesmo sexo são vítimas de violências morais e físicas, pessoas indígenas estão sendo questionadas e ameaçadas no que restou do território natural, as pessoas devem trabalhar mais, ganhar menos e ter reduzidas as garantias trabalhistas de proteção, mulheres são desrespeitadas pelo fato de serem mulheres, apenas para citar exemplos do ponto a que chegamos. São atrocidades que reforçam preconceitos de toda ordem e banalizam a vida, indicando retrocesso nas relações sociais em suas diferentes nuances.

A questão racial é assunto recorrente. Costumo dizer que a cor da pele é a primeira visão que se tem de uma pessoa. Senti isso muitas vezes em shoppings centers, quando a resposta para a minha pergunta sobre o preço de um produto em lojas de grife foi “esse é muito caro”. Ou seja, “não é pra você, negra metida”, “não é pro seu bico”. Outras vezes, ouvi de pessoas próximas em ambiente “sofisticado” com a presença de negras: “O que essas negrinhas tão fazendo aqui?” Em reação ao meu olhar indagador, tive como resposta: “Isso não é com você. Você é diferente”. Diferente em quê? Somente pela minha condição socioeconômica?

Bisneta de negro alforriado que fez pequena fortuna no Maranhão, neta de um comerciante negro, filha de um juiz de direito negro, de uma família de oito filhos, todos negros e com formação acadêmica de nível superior. É preconceito às avessas: sou acolhida como negra porque não sou pobre. Duplo preconceito: ao negro e ao pobre. Sempre encarei esses assédios com dignidade e serenidade pela minha educação familiar. Não muito diferente, notícias cotidianas mostram atitudes preconceituosas relacionadas a questões de gênero e de classe social.

Agravam-se os preconceitos com manifestações insufladoras de autoridades de alto escalão e de grande parte de nossos representantes nos parlamentos. Todos com visão de mundo diferente, em que devem existir muitos pobres e poucos ricos, agregada a pautas conservadoras e discriminatórias. Todos dispostos a defendê-las em seus espaços de atuação. É legítima a defesa de concepções e ideias, mas há que respeitar e aceitar as origens e a história do nosso povo, bem como a diversidade própria da existência humana.

Ao pobre, sem perspectivas de atenção devida por parte do Estado à sua situação estrutural, resta submeter-se ao mínimo que lhe é proporcionado. É claro e óbvio que as pessoas que passam fome com a família sujeitam-se a qualquer oportunidade de emprego, ainda que com restrições trabalhistas e com viés escravagista. Vibram e festejam, pois é questão de sobrevivência. É claro e óbvio que empresários e investidores ganham muito com isso. Também vibram e festejam, pois é questão de acumulação de riqueza. Tudo travestido de políticas públicas de emprego e de inclusão social, quando, na verdade, mantêm o nível de pobreza e não reduz a desigualdade social. Que triste realidade!

Sorte nossa que sempre existiram pessoas que lutaram por sociedades mais igualitárias e pela valorização da dignidade humana e do trabalho em condições razoáveis. Zumbi dos Palmares, Martin Luther King, Nelson Mandela, Bob Marley, Laudelina de Campos Melo, Marielle Franco, entre muitos outros guerreiros e guerreiras, nos ensinam até hoje: relacionemo-nos mediados pelo respeito, independentemente da cor da pele, da condição socioeconômica, da orientação sexual, das escolhas de cada um, e construamos um mundo justo, sem marginalização social.

Diante desses exemplos de coragem e disposição, saiamos da timidez e do comodismo e nos juntemos aos que hoje lutam por uma sociedade mais justa, sem hipocrisias nas relações, para que possamos nos enxergar olho no olho com respeito e dignidade individual e coletiva. Do contrário, seremos sempre preconceituosos e pouco de bom teremos a transmitir às novas gerações para a promoção de relações sociais decentes e promissoras.
 
*Assistente social, especialista em gestão pública e em gestão de educação corporativa