Opinião

Opinião: Jogar ou contar a história?

''O que nossas famílias têm feito em tempos de confinamento: jogado ou contado (e registrado) histórias? Como nos lembraremos do isolamento na pandemia do novo coronavírus?''

Em tempos de quarentena devido à pandemia do novo coronavírus, uma das valiosas dicas de leitura tem sido o clássico A Peste, de Albert Camus (que foi goleiro, só para não deixar de falar um pouquinho de futebol). Mas há outras opções proféticas sobre o tempo em que vivemos. Fica a dica de O Decamerão, escrito por Giovanni Bocaccio, em 1353. Por sinal, um dos mais procurados do momento no ranking internacional das livrarias virtuais.

Jovens ricos de Florença, na Itália, fogem da peste que assolava a Europa no século XIV. Sete mulheres com idade entre 18 e 28 anos; e três homens acima dos 25, marcham para bem longe da cidade. Confinados em uma casa num vilarejo no meio do nada, começam a discutir sobre o que fazer no longevo período de confinamento.

Pampinéia avisa aos amigos: “Trouxe-lhes os tabuleiros de damas e de xadrez, podem distrair-se conforme quiserem. Todavia, se querem escutar um conselho, creio ser preferível não jogar. Um das consequências imutáveis do jogo é conseguir sempre indispor um dos parceiros, e nem os adversários e tampouco os espectadores extraem qualquer prazer dessa indisposição”.

Provavelmente, Pampinéia era uma espécie de “influenciadora digital” daquele mundo analógico. Frustrou o passatempo da turma, mas logo apresentou alternativa. “Ora, se cada um de nós relatasse uma história, todos ficariam contentes”, sugere, com aprovação unanime.

Em vez da competição, o entretenimento passar a ser contar histórias sem vencedores ou vencidos. Sem troca de farpas entre os confinados na casa. Assim, o clássico da literatura italiana começa a sair do papel. Cada um dos 10 jovens é desafiado a contar 10 histórias para fazer esquecer a peste. Os 100 contos viram um documento da peste que dizimou a Europa. Giovanni Bocaccio estima em 100 mil a quantidade de vítimas — em Florença e nos arredores.

O link do livro com o presente impressiona. Tanto a peste quanto a pandemia do novo coronavírus exigem a tomada de decisões éticas (ou não) que pressionam a humanidade. Os 10 jovens encontraram refúgio. Outros ficaram expostos à praga, desprotegidos ou prestando serviços essenciais. Há sentimento de deserção, traição, egoísmo entre os exilados. Mas também formam uma comunidade capaz de contribuir para reconstruir as relações humanas.

O que nossas famílias têm feito em tempos de confinamento: jogado ou contado (e registrado) histórias? Como nos lembraremos do isolamento na pandemia do novo coronavírus? Recordaremos as disputas (algumas banais) que tivemos, ou deixaremos registrado o legado do ano em que a humanidade pode estar reinventando suas desgastadas relações? As páginas estão em branco. O livro é seu.